Desde que eu era guri lá em Dom Pedrito, minha terra natal, que escuto histórias a respeito de um goleiro que jogou no Grêmio de Porto Alegre, lá pelos anos 20 e 30. Nenhum jogador de futebol na história do Rio Grande do Sul foi tão reverenciado quanto Eurico Lara. Tanto é verdade que seu nome ficou imortalizado no hino gremista, composto para o cinqüentenário do clube por outro não menos imortal, o grande Lupicínio Rodrigues, o homem da “dor de cotovelo”: “Lara, o Craque Imortal, soube o seu nome elevar. Hoje, com o mesmo ideal, nós saberemos te honrar".
O começo de Lara no futebol foi igual ao de qualquer guri. Naqueles tempos não faltava um campinho para bater bola, pois a especulação imobiliária estava longe de aparecer. Nas tradicionais peladas às margens do rio Uruguai Lara, por ser muito franzino sobrava sempre no “par ou impar” e ia para o gol, posição que ninguém queria jogar. Sorte sua. Foi servir no Exército e ganhou a titularidade no time da farda verde.
Suas atuações foram tão boas que ganhou fama na região. Diziam que quando Lara jogava, era vitória certa do time militar, não importando quem fosse o adversário. Mesmo sem as facilidades tecnológicas de hoje, em que a informação é instantânea, a notícia de que em Uruguaiana havia um goleiro que era uma verdadeira muralha, não demorou a chegar aos ouvidos dos dirigentes gremistas, que mandaram um “olheiro” até a cidade fronteiriça confirmar se era mesmo verdade.
Em princípio Lara, não queria se mudar para Porto Alegre, pois estava acostumado com a vida calma da cidade pequena. Mas a insistência foi tanta que acabou aceitando. Não teve problema algum para a transferência militar, graças à participação de pessoas influentes dentro do Grêmio. Era o ano de 1920. Vestido com a farda verde-oliva - naquele tempo o soldado não podia andar a paisana - chegou ao Grêmio e em seguida foi campeão da cidade, seu primeiro título no tricolor.
O futebol ainda era um esporte amador. Por isso Lara dividia seu tempo jogando no Grêmio e no time do Exército. Em 1922, foi campeão das classes armadas. Sua fama começou a crescer, e se consolidou fora do Rio Grande do Sul depois de se destacar na seleção gaúcha que disputou um torneio preparatório para escolha dos jogadores da Seleção Brasileira que disputaria o Campeonato Sul-Americano de 1922, no Brasil.
Mesmo jogando no Grêmio e na Seleção Gaúcha, Lara não descuidou da sua carreira militar e chegou ao posto de tenente. Em 1930 participou e acompanhou as forças revolucionárias que escreveram uma página importante para a história do país. A revolução de 30 foi um movimento armado liderado pelos estados de Minas Gerais e Rio Grande do Sul, que culminou com a deposição do presidente paulista Washington Luis em 24 de outubro.
Com o fim do conflito Lara voltou a se dedicar ao futebol. Novamente convocado para a seleção gaúcha, fechou o gol em uma partida contra a Seleção Paulista, disputada no Estádio de Parque Antártica, em São Paulo. Os gaúchos perderam por 2 X 1, mas Lara foi a grande sensação do jogo, realizando magníficas defesas e encantando os torcedores, que após o apito final invadiram o campo para carregá-lo em triunfo. A consagração nacional, finalmente chegou. Pena, que não foi convocado para a Seleção Brasileira, apesar de ter defendido um pênalti e mais de 20 potentes chutes de Friendereich, o grande ídolo do futebol brasileiro naqueles tempos.
Em setembro de 1935, a tuberculose avançava rapidamente e os médicos proibiram Lara de continuar jogando. Contam que ainda assim, ele insistiu para entrar em campo na decisão do Campeonato Farroupilha de Porto Alegre, no “Fortim da Baixada”. O Grêmio precisava vencer, o Internacional tinha a vantagem do empate. Até na história do clube está relatado que mesmo doente Lara foi o herói do jogo, tendo realizado nesse dia talvez a sua melhor partida com a camisa do Grêmio.
E que entrou em campo com a saúde muito debilitada, só resistindo o primeiro tempo, quando começou a passar mal. No intervalo foi levado para o hospital da Beneficência Portuguesa onde morreu dois meses depois, no dia 6 de novembro. O Grêmio venceu de forma heróica aquele jogo por 2 X 0 com gols nos últimos dois minutos. Mas pouca coisa dessa história é verdade. Lara já estava internado e fugiu do hospital para assistir o jogo. Mas não entrou em campo, não jogou. Foi o princípio da lenda. Morreu, sim, dia 6 de novembro daquele ano. A tuberculose marcou um gol fatal, sem defesa contra o goleiro de 37 anos.
A morte de Lara causou uma comoção geral. Nas ruas de Porto Alegre os torcedores choravam a morte do ídolo. Tricolores e colorados se uniram na dor, pois afinal de contas Lara foi um verdadeiro símbolo do futebol gaúcho. O enterro foi um dos maiores que Porto Alegre viu. A cidade parou para dar o adeus a Eurico Lara, o goleiro que entrou para a história do Grêmio como o “Craque Imortal”, para nunca mais sair. Deixou uma herança invejável de conquistas: campeão de Porto Alegre em 1920, 1921, 1922, 1923, 1925, 1926, 1930, 1931, 1932, 1933 e 1935. Campeão gaúcho em 1921, 1922, 1926, 1931 e 1932.
Lara jogou no Grêmio de 1920 a 1935, quando faleceu. Em 1928 se desentendeu com o presidente tricolor e foi para o Fussball Club Porto Alegre, mas depois de perder uma partida para o próprio Grêmio, voltou ao clube.
Poucas pessoas que viram Lara jogar ainda são vivas. Afinal de contas, já se passaram 72 anos desde o dia da sua morte. E isso explica em parte porque o jogador virou lenda. Corre de boca em boca histórias incríveis, atribuídas ao grande goleiro. Salin Nigri, um apaixonado torcedor gremista, em entrevista a Rádio Gaúcha, de Porto Alegre contou duas delas, mas garantiu que são verdadeiras.
No primeiro treino no Grêmio, ao lhe entregarem a camisa de goleiro, Lara perguntou ao treinador: "Como assim? Por que recebi essa camiseta? Não sou goleiro". A surpresa foi geral. Lara explicou que nas peladas lá em Uruguaiana, ninguém queria ir para o gol e sempre sobrava para ele, que na verdade queria ser atacante. A outra historia é que Lara, em certa partida, quebrou um dos braços, mas não quis sair de campo e assim mesmo fez grandes defesas até o fim do jogo.
A revista da Federação gaúcha de Futebol, em uma de suas edições contou algumas histórias que mesmo não sendo reais, viraram verdades e se tornaram lendas. Foi assim, que, em muitos pontos do Rio Grande do Sul, o nome de Eurico Lara se tornou um mito.
Durante muitos anos se acreditou que Lara morreu dentro de campo, no “Gre-Nal Farroupilha”, ao defender um pênalti cobrado por um seu irmão, jogador do Internacional. Essa história não é verdadeira, mas os gremistas mais velhos a contam com orgulho até hoje, de pai para filho. O jornalista gaúcho e gremista de quatro costados, Airton Gontow escreveu uma crônica belíssima, que eu tomo a liberdade de transcrever.
Lara estava no quarto de um hospital, com turberculose, no dia da final do campeonato gaúcho contra o "inimigo" Internacional. Eurico Lara fugiu do leito para assistir ao jogo. Um empate daria o título ao Internacional, que estava com um ponto a mais na competição.
Faltando, três minutos para o jogo acabar o juiz marcou um pênalti para o Internacional. A torcida gremista, em grande maioria, ficou em silêncio, com medo da catástrofe. Foi neste momento que Eurico Lara disse para o homem que cuidava do portão junto ao gramado do estádio: "Abre".
Quando entrou em campo, Eurico Lara foi tirando a camisa, as calças... - estava de uniforme por baixo e de chuteiras. O estádio explodiu em espanto e alegria, mas, logo depois, aconteceu um silêncio sepulcral, que até hoje impressiona a todos os que assistiram à cena. Era como se não houvesse pássaros, vozes, vento...
O atacante do Internacional, um próprio irmão de Lara ajeitou a bola. Parecia um touro feroz, enquanto se preparava para iniciar a curta corrida em direção a bola. O chute saiu forte, alto, no canto esquerdo. Mas Eurico Lara, saltou como um gato e encaixou a bola no peito. Com ela continuou agarrado quando caiu no chão.
A torcida entrou em delírio. Os jogadores se aproximaram para reverenciar aquela lenda do futebol. O estádio era uma chuva de chapéus, como nunca mais se viu, nem mesmo com o anúncio do fim da Segunda Guerra Mundial. Mas Eurico Lara continuava deitado no chão. Com a bola no peito. Não queria soltá-la. Os jogadores foram se afastando. A torcida de pé, em silêncio, compreendeu o que acabava de acontecer: Eurico Lara estava morto. Morto com a bola grudada naquele imenso peito gremista. No gramado, milhares e milhares de chapéus agora eram como flores. Flores homenageando aquele deus do futebol.
Até hoje o nome de Lara é lembrado. Ao início do ano passado a Rede Globo, no programa “Esporte Espetacular” contou a história do craque. E em setembro a revista “Placar” publicou a matéria “O Primeiro Imortal”, onde o jornalista Dagomir Marquezi relembrou as façanhas de Lara, inclusive contando que o goleiro teria falecido logo após receber um potente chute no peito desferido pelo seu próprio irmão.
Euclides Lara é nome de rua em Porto Alegre. Em Uruguaiana, sua terra natal durante algum tempo o Estádio do E.C. Uruguaiana levou seu nome. Foi mudado depois para Felisberto Fagundes Filho. Eu desconheço as razões. (Texto e pesquisa: Nilo Dias)