sábado, 19 de outubro de 2013

A tragédia de Alegrete

O dia 4 de dezembro de 1983 ficou marcado para sempre nas vidas de Celeni Viana e José de La Cruz Benitez Santa Cruz. O primeiro era atacante da Associação Atlética Alegrete e o segundo, goleiro do S.C. Internacional, de Porto Alegre. A tragédia aconteceu no jogo amistoso disputado entre as duas equipes, no Estádio Municipal Farroupilha, na cidade gaúcha de Alegrete.

Eram 8 minutos de jogo quando Celeni, de 19 anos, chocou-se com a cabeça de Benitez. O goleiro paraguaio, que foi titular do tricampeonato brasileiro invicto do Internacional acabava de encerrar a carreira naquele lance, aos 31 anos de idade.

No choque, Benitez bateu a cabeça e sofreu com o "efeito chicote", quando a cabeça é atirada para trás e volta. A coluna amassou o nervo na hora, o que ocasionou paralisia dos membros superiores e inferiores, conforme o doutor Paulo Rabelo, que era o médico do Internacional naquela fatídica tarde em Alegrete.

Após o choque, o goleiro ficou caído na área, enquanto o jogo prosseguia. Mauro Galvão, que assim como os demais corria para o ataque, reparou que Benitez continuava caído. Voltou para perguntar se estava tudo bem e notou que o companheiro estava sufocando, sem ar.

Acenou desesperadamente para o médico que correu para o gramado e, ao chegar ao paraguaio, de cara confirmou o pior: o camisa 1 do Internacional estava tetraplégico - e com asfixia, decorrência da contusão medular.

Benitez estava lúcido, mexia com a cabeça e os olhos, e sinalizou que havia batido com a cabeça. O médico constatou que do pescoço para baixo, estava tudo paralisado. Ainda no gramado, o goleiro conseguiu recuperar a respiração, depois que o médico utilizou seus conhecimentos de primeiros socorros, segurando-lhe a cabeça e ajudando a retomar o fôlego.

O jogo prosseguiu com Gilmar Rinaldi entrando no lugar de Benitez. Ruben Paz fez o gol da vitória colorada ainda no primeiro tempo, aos 41 minutos.

Benitez saiu de maca, em direção ao vestiário, onde o roupeiro Gentil Passos tirou-lhe as chuteiras, luvas e ataduras, para que não comprimissem a circulação. O goleiro, já sem as chuteiras, pediu ao roupeiro que as tirasse de seus pés. Gentil Passos entendeu na hora que ele não sentia mais as pernas e começou a chorar.

Até aquele momento, apenas poucas pessoas sabiam do drama que Benitez estava enfrentando para conseguir sobreviver. Os jogadores e o restante da delegação só ficaram sabendo do que ocorria, no intervalo do jogo.

O jogador foi levado para o hospital da Santa Casa de Alegrete. A esperança de que houvesse uma recuperação rápida, até que foi aventada, quando o goleiro fez movimentos involuntários dos músculos em suas pernas. Mesmo com a paralisia momentânea, o corpo de Benitez reagia. O doutor Paulo Rabello chegou a dizer para Benitez, na ocasião, que ele voltaria a andar.

Horas depois do atendimento hospitalar, o médico e o goleiro deixaram Alegrete, embarcando em um helicóptero do Exército, daqueles sem portas, de filmes de guerra. Mal conseguiam conversar, devido ao barulho das hélices. Desceram em Santa Maria. De lá, um jatinho levou os dois para o Hospital Moinhos de Vento, em Porto Alegre.

Foi quando Benitez reencontrou a mulher, Ivana, gaúcha de Taquari. Eles ainda não haviam completado um ano de matrimônio. Casaram com pompa em 18 de dezembro de 1982. A partir do acidente, Ivana se mostrou como uma bênção na vida de Benitez. 
 
Na primeira semana em que esteve hospitalizado, Benitez correu sério risco de vida, pois teve uma infecção renal, decorrente do acidente. O doutor Paulo Rabelo garante que ele só sobreviveu porque sempre foi muito forte.  Benitez sofreu uma espécie de amassamento da medula, o que não permitia que o cérebro enviasse “mensagens” ao restante do corpo.

Benitez ficou sabendo que nunca mais poderia jogar, num encontro, na casa do doutor Paulo Rabelo, na Rua da República, em 1985. Foi depois de um jantar entre as famílias, que o médico chamou o goleiro para uma conversa na sala de estar, quando explicou detalhadamente por que, apesar da recuperação dos movimentos parciais de braços e pernas, o corpo de Benitez não permitiria o retorno ao futebol. Foi uma conversa dramática, dura, em que os dois choraram abraçados.

O choque ocorrido em Alegrete acabou por mudar os rumos das vidas de Benitez e Celeni. O atacante deixou de jogar futebol, depois da promessa que fez, de que se Benitez não retornasse aos gramados, ele também deixaria de jogar.

Celeni ainda conseguiu dar a volta por cima e refez sua vida, superando o trauma que sofreu ao ser chamado de “assassino” nas ruas de Alegrete. Por muito tempo o jovem atleta da Associação Atlética Alegrete teve de aguentar ser chamado assim. As pessoas que passavam de carro, abriam os vidros só para xingá-lo.

Hoje, é vereador em terceiro mandato na cidade. De vez em quando joga um futebolzinho, mas só na várzea. Com 50 anos de idade, o ex-jogador é pai de sete filhos e avô de sete netos.

O jogador do time interiorano garantiu sempre que não tocou com o pé na testa do goleiro, mas sim com o joelho direito e que saltou para não acertá-lo. Conseguiu tirar a perna esquerda, mas não deu para evitar o choque com a direita. O lance teria sido casual. Na ânsia de fazer o gol, o atacante viu Benitez virando-se rapidamente para a bola e, em um instante, caíu ao chão.

O ex-goleiro até hoje caminha com dificuldade, apoiado na perna esquerda. Utiliza-se de uma muleta, à mão direita, para realizar pequenas e lentas manobras dentro do apartamento de três quartos, seu refúgio há anos. A perna direita jamais foi totalmente recuperada, apesar das três décadas de fisioterapia. Precisará de próteses nos joelhos – gastos pela carreira e pelo acidente de Alegrete.

A tragédia de Alegrete deixou marcas mais profundas. Benitez e a esposa Ivana não puderam ter filhos. Guardaram o carinho para a papagaia “Princesa” e a papafigo “Bombom“, um passarinho azulado, que à noite dorme deitado em uma caminha, com direito a coberta.

Quando jogava, Benitez, que pesava cerca de 120 quilos e tem 1 m 85 cm de altura, já havia retirado os meniscos dos joelhos, por lesões. Na preparação física estava acostumado a carregar sacos de areia, subindo e descendo arquibancadas. Hoje, anda com dificuldade, amparado pela muleta que o permite repousar o pé direito no chão, enquanto caminha com o esquerdo.

Tudo na vida tem um preço. Os 13 anos de carreira como jogador e a tragédia de Alegrete custaram muito caro. Hoje, Benitez, com 61 anos, pouco sai de casa, passa boa parte do dia sentado, assistindo jogos pela TV. Tem como companhia a esposa Ivana, com quem divide um apartamento em uma rua calma do bairro Menino Deus.

O Grêmio Náutico União, onde faz fisioterapia é um dos poucos lugares que frequenta. Vez que outra vai ao Paraguai visitar parentes. Quase sempre mostra um sorriso triste no rosto. E costuma dizer: “O que fica da vida são os amigos. E, graças a Deus, ainda tenho alguns bons companheiros na minha agenda”.

Nos anos 90, depois que foi obrigado a deixar os gramados, Benitez tentou a carreira de treinador. Dirigiu o Santa Cruz, de Santa Cruz do Sul e o São José, de Porto Alegre, além de ter sido orientador de goleiros do Internacional.

Depois trabalhou como empresário, tendo sido responsável pela vinda de importantes atletas paraguaios que brilharam na dupla Gre-Nal como Arce, Gamarra, Rivarola e Enciso. Mas a dificuldade de locomoção, não o deixou continuar na carreira de empresário. Mas ainda tem contatos no Paraguai e um bom olho para jovens jogadores.

Hoje Benitez vive da poupança, de dois imóveis alugados em Assunção (Paraguai) e da aposentadoria de R$ 1,5 mil do INSS. E também convive com dores diárias, com as quais aprendeu a lidar, sem medicação.

Este ano de 2013 foi especial para Benitez e Celeni. O ex-atacante do time de Alegrete foi até Porto Alegre visitar o ex-goleiro do Internacional, 30 anos depois da tragédia de 1983.

Antes desse encontro, os dois só haviam se visto uma única vez. No dia seguinte ao acidente, Celeni visitou Banitez no Hospital Moínhos de Vento, na Capital. O ex-atacante lembra que estendeu a mão para cumprimentar Benitez, e esta caiu, sem forças.

Na recente visita que fez, Celeni, com os olhos marejados, disse estar aliviado e livre de uma condenação de 30 anos, depois de receber o abraço apertado de Benitez, que sem nenhum ressentimento disse: “Que bom te ver, guri. Que coisa boa ver que tu está bem, que alegria. Tá com uma cara boa... Nunca mais tive notícias tuas. Esse guri não teve culpa. São coisas do futebol, coisas da vida”.

Benitez nasceu em Assunción, no Paraguai, dia 3 de maio de 1952. Começou a carreira no Olimpia, clube de seu país, e foi para o Internacional em 1977, para substituir o lendário goleiro Manga.

O começo no Inter não foi bom, por essa razão foi emprestado ao Palmeiras, em 1978, quando o titular Leão, servia a Seleção Brasileira. Pelo clube paulista fez 24 jogos, com 13 vitórias, oito empates e três derrotas, tendo sofrido 13 gols. 

Em 1979, voltou ao Internacional, onde fez grandes partidas e conquistou vários títulos, entre os quais o de campeão brasileiro invicto, em 1979, além dos campeonatos gaúcho de 1978,1981,1982 e 1983. (Pesquisa: Nilo Dias)
  
Depois de 30 anos, Celeni e Benitez voltaram a se encontrar. (Foto: Divulgação)