quinta-feira, 16 de janeiro de 2014

Quando o futebol vira guerra


Em 1969 aconteceu uma das mais fantásticas histórias envolvendo o futebol mundial em todos os tempos, quando Honduras e El Salvador disputavam classificação para a Copa do Mundo de 1970, no México e entraram num conflito armado e verdadeiro fora dos gramados. O futebol foi apenas um pretexto para que os dois países pegassem em armas.   

Honduras e El Salvador mantinham já há alguns anos um quadro de hostilidades crescentes. Além dos interesses das elites nacionais envolvendo oportunidades abertas – e fechadas – pelo Mercado Comum Centro Americano (MCCA), a imigração de salvadorenhos para Honduras, disputando empregos e oportunidades, incitava a xenofobia e alimentava tensões.

Para piorar, leis hondurenhas impediam que empresas tivessem mais de 10% de salvadorenhos em seus quadros. E esses também não podiam escriturar terras em Honduras. Neste quadro, o futebol seria o elemento catalisador de conflitos que iam muito além do campo de jogo.

Em apenas três jogos ocorreram fatos tristes e incríveis. O primeiro deles foi num domingo, 8 de março de 1969, em Tegucigalpa, capital de Honduras. É verdade que os jogadores salvadorenhos não tiveram a recepção que pediram a Deus. Pelo contrário. Ninguém dormiu na noite que antecedeu o jogo.

Os torcedores hondurenhos foram para a frente do hotel, jogaram pedras nas janelas dos quartos, bateram em tambores e latas, explodiram foguetes e buzinaram seus carros sem parar. Ao mesmo tempo assobiavam, berravam e gritavam palavras de ordem, para que os adversários entrassem em campo cansados e nervosos.

Tais fatos são comuns na América Latina, não espantam a ninguém.
Mesmo sem dormir um minuto sequer, o onze de El Salvador portou-se valentemente em campo, só cedendo a vitória para os locais no último minuto do segundo tempo, quando o atacante Roberto Cardona fez o gol único da partida.

Mesmo assim a seleção visitante foi vaiada, debochada e ofendida até no aeroporto de Tegucigalpa, quando retornava ao seu país num avião especial, naquela madrugada. Os sete mil torcedores salvadorenhos presentes em Tegucigalpa foram hostilizados de todas as maneiras, nos hotéis, restaurantes, nas ruas e no estádio.

Como se isso não bastasse, na zona rural de Tegucigalpa algumas casas de salvadorenhos foram atacadas, mulheres violentadas e uma bandeira de El Salvador profanada.

Logo após o apito final do árbitro aconteceu o impensável, o imprevisto, a tragédia, bem longe do local do jogo. Uma jovem torcedora salvadorenha, Amélia Bolanios, de apenas 18 anos, que via à partida pela televisão em San Salvador, levantou-se da cadeira, foi até uma escrivaninha, pegou o revólver de seu pai e deu um tiro no próprio coração.

No dia seguinte o jornal “El Nacional”, de San Salvador estampou em manchete: “Jovem não suportou ver seu país de joelhos”. O sepultamento de Amélia Bolanios foi acompanhado por todo o país, já que a televisão transmitiu tudo. Parecia que uma grande autoridade do país tivesse morrido, pois o cortejo fúnebre foi acompanhado de um destacamento militar, com estandarte e tudo.

O caixão estava coberto pela bandeira nacional. O presidente da República e todos os seus ministros estavam presentes, seguidos pelos jogadores da seleção salvadorenha. O que deveria ter sido tratado como um ato tresloucado, acabou por virar comoção nacional.

Os salvadorenhos estavam dispostos a dar o troco no jogo seguinte, que ocorreu uma semana depois, no “Estádio Flor Branca”, em San Salvador. O time de Honduras provou do mesmo veneno destilado na véspera do jogo anterior. Dessa feita foram eles que não dormiram nas duas noites que passaram em San Salvador.

Os enfurecidos torcedores salvadorenhos quebraram as vidraças de todas as janelas do hotel, ao mesmo tempo em que jogavam toneladas de ovos podres, ratos mortos e panos fedorentos.

O time de Honduras teve de ser levado até o estádio escoltado por carros de combate da Divisão Motorizada de San Salvador, o que impediu que fossem linchados pela multidão, que acompanhou o trajeto carregando fotografias da agora heroína nacional Amélia Bolanios.

Em volta do estádio soldados da tropa de elite da "Guardia Nacional", munidos de metralhadoras. Quando da execução do hino hondurenho, nada se ouvia além de vaias e assobios. A bandeira de Honduras foi queimada e em seu lugar colocaram no mastro oficial um pano esfarrapado, para delírio da multidão.

Os jogadores de Honduras se sentiram prisioneiros a beira de uma execução. Ninguém estava interessado no jogo, sim em sair dali com vida. E respiraram aliviados com a derrota de 3 X 0. Foram até o aeroporto levados pelos mesmos carros de combate.

Mas os torcedores não tiveram a mesma sorte, foram agredidos a pauladas e pontapés na fuga em direção à fronteira. Pelo caminho, dois foram mortos e dezenas de outros acabaram hospitalizados. E ainda 150 automóveis dos visitantes foram incendiados. Horas depois, a fronteira entre os dois países foi fechada.

No dia seguinte em Honduras grupos paramilitares atacaram os salvadorenhos. Na zona rural, hondurenhos atacaram os salvadorenhos residentes, roubando seus pertences e forçando suas fugas. Em 25 de junho, o governo de El Salvador acusou Honduras de genocídio e logo os países romperam relações diplomáticas e comerciais.

Dois dias depois, em 27 de junho, em razão de cada país ter vencido um jogo, as duas seleções decidiram a vaga num confronto extra, realizado no “Estádio Azteca”, na Cidade do México. No tempo normal houve empate de 2 X 2.

E na prorrogação El Salvador, com um gol de Rodrigues se garantiu na Copa do Mundo de 1970, lá mesmo, no México. Nesse dia do desempate, os dois países fecharam suas fronteiras e mobilizaram suas tropas. O jogo estava terminado, agora era a vez da guerra de verdade entrar em campo.

Em 14 de julho, as tensões eram enormes, e a guerra começou com um ataque aéreo de El Salvador. No total, às 100 horas de conflito deixaram quatro mil mortos e milhares de camponeses desabrigados.

O saudoso jornalista polonês Ryszard Kapuscinski, único correspondente estrangeiro a fazer a cobertura desses jogos escreveu o livro "A Guerra do Futebol" (Companhia das Letras, 2008), em que relata o episódio que se concretizou em conflito armado por causa de uma partida de futebol. Em ano de Copa do Mundo, vale a pena ler. (Pesquisa: Nilo Dias)

 Monumento a "Guerra do Futebol", em Honduras.