Eu
tenho uma longa vivência no futebol, desde o amadorismo varzeano até o
profissionalismo. Lembro de ter visto muitas vezes, até na minha cidade natal,
Dom Pedrito, a aplicação de injeções ditas estimulantes como “Glucoenergan”, “Energizan”
e “Thiaminose”, em atletas amadores.
Eram
ampolas de 10 e 20 centímetros, aplicadas na veia. Naquele tempo não havia
maiores preocupações com doenças tipo “AIDS” e “Hepatites”. Nem existiam,
ainda, as seringas descartáveis.
Anos
depois, quando eu era diretor de futebol do Rio-Grandense, de Rio Grande e
também quando presidi a S.E.R. São Gabriel, vi a repetição da cena, mas com uma
diferença: as seringas eram descartáveis, o que afastava qualquer tipo de
contaminação.
Voltando
no tempo. O procedimento era simples. Antes dos jogos, e às vezes também nos
intervalos, os jogadores esticavam o braço com a mão fechada, para fazer saltar
a veia à espera que o enfermeiro lhes aplicasse às injeções.
Em
um canto do vestiário um pequeno fogareiro à álcool aquecia o estojo de metal
com água ou álcool fervente, dentro do qual boiava uma seringa de vidro.
Na
época ninguém tinha consciência de que o uso da mesma agulha, mesmo que
passando por um processo duvidoso de fervura, pudesse estar dando início a um
lento processo de morte.
Alguém
que já estivesse infectado contagiava os colegas. O enfermeiro aplicava uma
injeção, mergulhava a seringa no estojo, tirava-a com a pinça e injetava em
outro. A coisa funcionava assim.
Naquele
tempo o temor maior era contra bactérias, viroses, infecções e doenças venéreas.
A fervura atingia 100ºC, o que de nada adiantava, porque são necessários 150ºC
para destruir o vírus.
Ninguém
sabia da existência de um inimigo oculto e mortal, que permanecia vivo na
seringa e na agulha. A ciência só identificou o agente da “Hepatite C”, em
1989.
Essa
mesma rotina se estendia a quase todos os clubes pequenos e médios de futebol
do país e talvez até do mundo. A expectativa era de que esse líquido amarelo
ajudasse o time a correr mais e cansar menos. Não era considerado “dopping”. E
nem havia nada que confirmasse esse esperado efeito milagroso. A coisa parecia
mais psicológica que real.
Os
médicos não aprovavam tal prática, alguns até proibiam, por isso em clubes
maiores e mais organizados não se aplicavam tais injeções. Nos clubes menores
os enfermeiros faziam de tudo: infiltrações musculares, ministravam vitaminas e
aplicavam a glicose.
Era
comum uma dose de 50 mililitros ser dividida em cinco braços, tirando a agulha
de um e colocando em outro, com a crença de que todos eram sadios.
O
tempo mostrou que não era bem assim. O vírus costuma resultar em cirrosse e
câncer do fígado, num período de 20 a 40 anos depois da contaminação, por isso
as mortes estão ocorrendo nos últimos anos. O caso mais conhecido de
contaminação pela “Hepatite C” foi o que atingiu o S.C. Gaúcho, de Passo Fundo
(RS).
De
uma formação tradicional do clube em 1973, passados 42 anos, apenas três
ex-jogadores estão vivos: Luiz Freire, seu irmão Zé Augusto e o
lateral-esquerdo Luiz Carlos. Os outros, a doença se encarregou de matar. O
primeiro a contrair “Hepatite C” foi o ex-goleiro Carlos Alberto, que com pouco
mais de 30 anos morreu em meados dos anos 1980.
O
zagueiro central João Pontes não resistiu a herança do vírus. Seu irmão Daizon
Pontes, morreu de um AVC. Não se sabe se também estava contaminado com o vírus
da “Hepatite C”.
Também
os zagueiros reservas, Lívio e Raul Santos foram abatidos pela “Hepatite”.
Igualmente o centroavante Bebeto, conhecido como o “Canhão da Serra”, um dos
maiores goleadores do futebol gaúcho. Os últimos foram os pontas Leivinha e
Serginho, em 2013.
Estatísticas
confirmadas pelos órgãos da Saúde, em Passo Fundo, mostram que desde 2010 já
são 17 os remanescentes que acabaram contraindo o vírus “HCV”, todos ex-profissionais
do Gaúcho e do 14 de Julho, o outro clube da cidade.
A
última lista divulgada tinha os nomes de Marquinhos, Laerte, Mosquito, Mica,
Ilo, Lívio, Téio, Pedro, Raul Matté, Marianinho, Machado, Ivan, Cid, Tadeu
Bauru, Serginho e Leivinha. Até o massagista Pinto contraiu a hepatite.
Mas
essa lista pode ser bem maior, pois ninguém sabe o número completo das vítimas,
desde 1980. Muitos saíram da cidade. “Muita gente morreu. Muita gente vai
morrer”, alertou o hoje técnico Luiz Freire, um mito que fez nome no Gaúcho, no
Caxias, no Inter, Grêmio, Brasil, de Pelotas e Coritiba.
Em
2013, Luiz Freire e seu antigo colega Luiz Carlos, se encontraram em Passo
Fundo. Não se viam havia anos. Foi um reencontro emotivo, em que comentaram a
morte de Leivinha, também ex-jogador do Gaúcho, outra vítima da “Hepatite C”.
Luiz
Freire, 62 anos, e seu irmão Zé Augusto, que hoje mora em Santo Antônio da
Patrulha, jamais se injetaram com estimulantes. Segundo contam, aprenderam com
o avô, Arnoldo Ellwanger, que era farmacêutico, a não usarem seringas que não
fossem as de casa. Aos 14 anos, Luiz Freire já sabia fazer aplicações. Começou
profissional no Gaúcho em 1971 e, um ano depois, entrou na faculdade de
Medicina.
Sempre
que via o enfermeiro no vestiário, advertia os colegas sobre as seringas
compartilhadas. Não era ouvido. Já Luiz Carlos também não dava atenção ao
amigo. Tomava a glicose porque os demais jogadores tomavam e o regulamento
permitia.
O
ex-lateral esquerdo, duro marcador de Valdomiro, Flecha e Tarciso, não queria
fazer o teste para o vírus “HCV”. Quem o convenceu foi um antigo atacante do
Gaúcho, Roberto Antonello que tratou a sua “Hepatite” e se dedicou a persuadir
os colegas a fazer o exame. Andava pelo Interior vendendo seguros e
aconselhando antigos jogadores.
Havia
um 12º jogador daquele time, João Francisco Guimarães, o “Paraná”, que há muito
havia deixado Passo Fundo. Ninguém sabia notícia dele, até já fazia parte da
lista de mortos da “Hepatite C”.
Agora
se sabe que ele não tomava a injeção. Pegava uma ampola, dizia que ia tomar na
farmácia, deixava o vestiário e colocava no lixo.
Pinto,
o enfermeiro que trabalhava no time do Gaúcho, de Passo Fundo, era funcionário do
antigo Serviço de Assistência Médica Domiciliar e de Urgência (Samdu).
Em
uma salinha, no estabelecimento, fazia aplicações em quem o procurasse e dali
saía a domicílio. Orgulhava-se do seu conjunto de 22 agulhas de aço, as peças
com as quais infectou inocentemente grande parte de Passo Fundo.
Foi
assim que mais da metade da equipe do Sport Club Gaúcho morreu em consequência
da “Hepatite C”, que também infectou colegas de outros clubes, inclusive o
ídolo Larry do Internacional, de Porto Alegre. É o que mostra excelente
reportagem da RBS TV, veiculada em 18 de outubro de 2010.
A
contaminação pelo sangue acabou se tornando um flagelo no país e patrocinou
tragédias por toda a parte ao longo dos últimos 30 anos.
Faltam
dados sobre óbitos relacionados à “Hepatite C” no futebol. E sobre o número de
ex-atletas vivendo com o vírus. Se há no país entre 2 e 3 milhões de pessoas
infectadas (apenas 150 mil diagnosticadas), estima-se, entre elas, dezenas de
milhares de ex-profissionais e amadores contaminados.
O
gastroenterologista e hepatologista Hugo Cheinker já atendeu em sua clínica em Porto Alegre o
equivalente a três a quatro times de futebol, incluindo gente com passagem pela
Seleção. E garante: “Praticamente, quem faz o teste descobre ser portador da
hepatite C”.
A
rigor, quem jogou futebol profissional no largo período entre 1960 e 1980
integra o grupo de risco. Deve realizar o teste específico para “Hepatite C”. O
“anti-HCV “, não é o mesmo exame de sangue de colesterol e glicose no check-up
rotineiro. O teste custa cerca de R$ 20 em laboratórios.
Há
uma resistência dos ex-jogadores em procurar ajuda. Preferem evitar a realidade
em caso de positivo, embora quanto mais cedo o tratamento se inicie, mais
segura é a recuperação.
Contraída
a hepatite aguda, o vírus começa a machucar o fígado e progride sem sintomas
durante 20, 30, 40 anos, até provocar cirrose e câncer. Daí porque os
contaminados dos anos 1970 ainda lidam com a enfermidade. São pessoas hoje com
mais de 60 anos.
Um
exemplo é Jurandir, ex-Grêmio. Ele foi fazer uma doação de sangue e, dias
depois, recebeu uma carta informando sobre sua hepatite C. Ficou apavorado.
Casado
há 40 anos, Jurandir buscou tratamento. Um ano depois, havia zerado o vírus.
Como o antigo jogador do Grêmio, entre 5 e 7 mil pessoas no país deverão ser
diagnosticadas este ano. Se fosse anos atrás, sete testes a mais teriam salvado
a vida do time do Gaúcho.
Hoje
existe um vírus que é 100 vezes mais contagioso que o “HIV”, mas tem um poder
de comoção infinitamente menor. É o vírus da “Hepatite B”. Segundo as
estimativas mais conservadoras, 1,5 milhão de brasileiros convive com ele. A
maioria sequer desconfia. Só o descobre quando o fígado está destruído.
O
médico Drauzio Varella decidiu investigar as “Hepatites”, para entender as
condições que contribuem para a transmissão do vírus. Ele esteve numa aldeia “Yawanawá”,
no Acre e visitou salões de beleza de São Paulo. Viu que as manicures trabalham
em condições inadequadas mesmo nos endereços mais chiques.
A
prevalência de “Hepatite” é muito alta no grupo das manicures, um assunto que
ninguém comenta. Elas usam equipamento que volta e meia provoca ferimentos. Se
a pontinha do alicate entrar em contato com uma gotícula de sangue infectado,
pronto. O vírus está ali.
Numa
aldeia “Yawanawá”, no Acre, perto de Cruzeiro do Sul, quase no Peru, o médico
constatou que 10% dos indígenas têm o vírus. A quantidade de crianças
infectadas é enorme. Pegam na infância e não é por transmissão materna.
É
por manipulação. Como tem muito mosquito por lá, as crianças são cheias de
feridas. Dormem três na mesma rede. Uma encosta a ferida na ferida da outra.
Coçam as feridas com os mesmos pauzinhos.
O
doutor Drauzio também foi a Salvador entrevistar jogadores de futebol
profissionais que contraíram o vírus nos anos 70. Naquela época, se acreditava
que era preciso dar vitaminas para os jogadores.
Davam
“Glucoenergan” na veia. No intervalo dos jogos, chegavam no vestiário com
aquelas caixinhas com seringa de vidro e aplicavam “Thiaminose” e “Complexo B”
na molecada toda.
Uma
quantidade absurda de “Hepatite B e C” foi transmitida dessa forma. Vários
desses jogadores morreram de cirrose. Como muitos pararam de jogar e começaram
a beber, todo mundo achava que morriam de cirrose por causa da bebida. Como
eles não sabem que tinham “Hepatite C”, bebiam sem saber que corriam riscos.
Até
da Seleção de 70 teve jogadores infectados. O médico não quis citar nomes, por
razões óbvias. Na Bahia, Varela colheu sangue de 22 ex-jogadores: quatro ou
cinco tinham o vírus da “Hepatite C” e não sabiam.
Segundo
o médico, as “Hepatites” são doenças negligenciadas, ninguém ouve falar sobre
elas. Parece que não têm charme. Não se sabe quantas pessoas têm o vírus. Os
dados do Ministério da Saúde não têm o menor valor porque só lidam com os casos
notificados.
A
“Hepatite A” é a da água suja, provocada pela falta de saneamento básico. Em
geral é doença de curso benigno. Mas ela se torna potencialmente mais grave
quando a pessoa a adquire na gravidez ou numa faixa etária mais avançada. A “Hepatite
B” é transmitida sexualmente e pelo sangue. E também passa da mãe para o feto.
Pelas
estimativas mais conservadoras, há no Brasil 1,5 milhão de portadores crônicos
do vírus. Ele é 100 vezes mais contagioso que o da “AIDS”. A principal causa de
transplante de fígado no Brasil é a “Hepatite B”. Se a doença for descoberta
mais cedo, há o tratamento com o medicamento “Interferon”.
A
verdade é que não se sabe quantos infectados com “Hepatite” existem no país. Se somarmos as ”Hepatites B e C”,
chegaremos a 2 milhões de pessoas, contra 600 mil infectados com o vírus da “AIDS”.
A
grande incidência do vírus da “Hepatite C” entre ex-atletas levou a Federação
das Associações de Atletas Profissionais (FAAP), em conjunto com a Sociedade
Brasileira de Hepatologia (SBH) a iniciar em 2010 uma campanha em âmbito nacional.
Time
do S.C. Gaúcho, de Passo Fundo, em 1973. (Foto: Luis Larchesqui. Reprodução
publicada no jornal “Zero Hora”, de Porto Alegre)