segunda-feira, 9 de janeiro de 2017

O mais famoso time de negros

A exemplo do Rio Grande do Sul que teve algumas equipes de futebol formadas só por jogadores negro e três ligas, a.... de Porto Alegre, a Rio Branco, de Pelotas e a...de Rio Grande, em São Paulo tivemos a Associação Athletica São Geraldo, chamada popularmente de o “clube dos homens de cor”.

A entidade foi fundada no dia 1º de novembro de 1917, por Silvério Pereira, Rufino dos Santos, Felisbino Barbosa, Horácio da Cunha, Benedito Costa e Benedito Prestes. A finalidade era promover a prática tanto do futebol quanto do atletismo. Não obstante, ao longo do tempo, seus investimentos maiores concentraram-se no esporte bretão.

As cores do clube eram o preto e o branco. Teve sua sede social primeiro na Barra Funda e posteriormente nos Perdizes. Sua criação deveu-se as dificuldades que os atletas negros e mulatos tinham para serem aceitos em uma das grandes agremiações do futebol paulista, como Athlético Paulistano, Associação Athlética das Palmeiras e Sport Club Corinthians Paulista.

Nos primórdios do futebol brasileiro era crença de que os jogadores negros eram inferiores tecnicamente aos brancos. Os raros que eram aceitos nos times, não tinham direito a participação nas atividades sociais, como festas e bailes.

A ideia de criação do São Geraldo não era apenas de um caráter recreativo. Muito mais que isso. Buscava, também, inserir a população negra paulistana na rede de associativismo que, a partir do início do século XX, floresceu por lá. As associações se multiplicavam na tentativa de proporcionar atividades recreativas, culturais, políticas e sociais dos negros.

Mesmo com todas voltadas para o enquadramento dos negros num ambiente social, os tipos de eventos e as atividades proporcionadas eram diferentes em vários aspectos, o que se poderia constatar nos próprios nomes dessas entidades. Algumas eram dançantes, outras recreativas. Havia às dramático recreativas ou dramático recreativas e literárias, dramáticos recreativas literárias e beneficentes, as beneficentes e humanitárias, recreativas e esportivas ou apenas esportivas.

Mesmo com atividades diferentes, elas contribuíam a sua maneira para o desenvolvimento de uma identidade específica de negros, já que não eram aceitos nas organizações de brancos.

O São Geraldo foi fundado na Barra Funda, bairro que acolhia uma grande população negra, formada, na maioria, por pessoas vindas de pequenas cidades do interior do Estado, em busca de melhores condições de vida.

O bairro da Barra Funda era o local preferido dessas pessoas, pois lá se encontrava a estação ferroviária e grandes  armazéns para estocar especialmente o café. A mão de obra era constituída, na maioria por negros, responsáveis pelos serviços mais pesados. Alguns se deslocavam até o porto de Santos, sempre que escasseava o trabalho em São Paulo. Já as mulheres prestavam serviços como domésticas nas casas das famílias ricas da cidade.

Nas horas de folga a população negra promovia batuques, rodas de samba, pernadas, umbigada e tiririca (espécie de capoeira), em volta dos botequins que existiam na Alameda Glette e no Largo da Banana. Nos períodos carnavalescos participavam dos grupos “Barra Funda”, “Campos Elísios” e “Flor da Mocidade”, que se constituíram nos primeiros cordões carnavalescos de São Paulo.

A Barra Funda propiciava condições para a prática de esportes, principalmente o futebol, visto que nas primeiras décadas do século XX, existiam vários terrenos baldios na parte alta do bairro, próximo ao Bom Retiro.

E foi num desses terrenos vazios que o São Geraldo teve seu primeiro campo, que ficava ao final Rua Tupi. O clube foi criado pelos negros da Alameda Glette, próximo à linha férrea. O grupo não tinha profissionais especializados, eram todos trabalhadores como carregadores e ensacadores. Eram conhecidos e respeitados como “valentes da Barra Funda”, devido a força física.  informações fragmentadas disponíveis não permitem tecer detalhes acerca da origem do São Geraldo.

Mesmo sem intelectuais no grupo, o São Geraldo conseguiu se organizar e oficializou em cartório o seu Estatuto, estabelecendo uma estrutura de funcionamento alicerçada em várias instâncias, tais como diretoria, corpo de associados e programa de atividades. Sua sede foi instalada na Rua Barra Funda, mais tarde transferida para a Rua Florêncio de Abreu.

Não demorou para o time se filiar à Associação Paulista de Esportes Atléticos (APEA), entidade que era a responsável de organizar o futebol no Estado, para disputar o campeonato da chamada “Divisão Municipal”, que reunia as equipes varzeanas da cidade.

Dono de uma equipe homogênea, constituída de bons jogadores, o São Geraldo logo ganhou destaque no futebol de várzea. Entre os destaques que vestiram a camisa preta e branca naqueles anos, estavam Zelão, Tita, Africano, Filipão, Olavo, Caçaróia, Pé, Buiú, Alfredo, Goiabada, Bizerrão, Caetano, Vaca Braba e Bode e Hilário que protagonizaram grandes espetáculos na chamada “Zona Pacaembu”.

Também tiveram passagem pelo “alvinegro” da Barra Funda,  Carlos Campos, o “famoso beque” Sarará, o atacante Ditinho – considerado um dos craques do time – e o “meia esquerda” Paulo, que foi uma figura brilhante, conforme escritos em jornais da época.

Quem pensa que praticar futebol naqueles distantes anos era tarefa fácil e barata, está enganado. Boa parte do material utilizado para o futebol era importado, tais como bola, meias, calções, luvas, joelheiras e tornozeleiras. Não se sabe exatamente a maneira pela qual o São Geraldo conseguia arcar com as despesas da equipe. Provavelmente a receita vinha das mensalidades dos sócios.

Também existiam outras fontes de renda: donativos e realizações de festas e bailes. A”Revista da Mocidade Negra”, noticiou em sua edição de 22 de julho de 1928, que  “Revestiu-se de grande brilhantismo o festival dançante que A.A. São Geraldo fez realizar no último sábado no salão Modelo à Rua da Consolação, 27, dedicado aos seus associados e suas famílias”.

Dionísio Barbosa, fundador e principal dirigente do “Cordão Carnavalesco Camisa Verde”, disse anos depois que emprestava o salão da agremiação ao São Geraldo, para a realização de suas festas, que eram realizadas para o clube angariar recursos para a compra de equipamentos esportivos. Não cobrava nada, ap0enas contava com os jogadores do São Geraldo fazendo a seguranças nas festas do “Camisa Verde”.

O São Geraldo tem uma bonita história. Sua principal conquista foi a “Copa do Centenário da Independência do Brasil”, nome dado ao campeonato paulista de 1922, que fez parte das comemorações dos 100 anos da emancipação política do país. A competição foi disputadíssima. O São Geraldo, com um time formado só por negros decidiu o título frente o Flor do Belém, uma equipe de brancos

A grande final foi realizada no Estádio da Floresta, num domingo de Páscoa. No primeiro tempo o São Gerado não esteve bem e saiu perdendo por 2 X 0. A torcida do Flor do Belém já gritava “é campeão”, “é campeão”.  Veio o segundo tempo e com ele a reação incrível do São Geraldo, que virou o jogo para 3 X 2 a seu favor. Os jogadores campeões deixaram o gramado, carregados por seus torcedores.

Depois dessa conquista o alvinegro da Barra Funda tornou-se o principal time de negros de São Paulo, embora de longa data já fizesse por merecer isso. Os jornais diziam que a “Associação Atlética São Geraldo era uma agremiação de homens pretos que, no esporte, tem sabido não só na capital, como em todo o Estado, honrar sobremaneira o nome do negro brasileiro”.

Cerca de um ano depois, os jornais, especialmente da imprensa negra, voltavam a se reportar ao São Geraldo, dizendo que se tratava de um clube que merecia um capítulo à parte. “Deus, parece, que escolheu a camisa alvinegra, para dar-lhes essa honrosa designação, evidenciando, deste modo, o quanto a nós, pretos, o Brasil deve a sua Independência”, publicou o “Progresso”, em 28 de julho de 1929.

O São Geraldo, além de participar das competições organizadas pela APEA, não dispensava jogos amistosos contra os clubes de negros. Bastava a existência no bairro de um time de futebol, para que a interação entre eles se desenvolvesse naturalmente.

O maior rival do São Geraldo era o Grêmio Barra Funda, do mesmo bairro. Eles realizaram jogos memoráveis. Em abril de 1926, o “Grêmio Recreativo Nem que Chova” promoveu um “festival esportivo”, com a presença de 10 times de futebol do meio negro, no campo do Paulista de Aniagens, situado na Rua Glicério. Como premiação, previa-se distribuir “duas ricas taças”.

O “festival” aconteceu no dia 9 de maio de 1926, e contou com a participação do São Geraldo. Já em 1932, a agremiação alvinegra disputou e ganhou a “Taça Clarim d’Alvorada”, enfrentando equipes esportivas da raça negra, que militavam na capital. Os amistosos do São Geraldo também aconteciam frente clubes do interior paulista. Em 11 de agosto de 1929, sua equipe viajou até a cidade de Campinas, onde enfrentou a Ponte Preta.

Mesmo amistoso, o jogo chamou muito a atenção. Um grande público compareceu ao estádio. A partida foi movimentada e terminou com a vitória da Ponte Preta, por 4 X 2. O São Geraldo teve um gol legítimo anulado, e um pênalti que foi desperdiçado.

O São Geraldo também jogou contra equipes de outros estados, principalmente do Rio de Janeiro, em torneios e jogos amistosos.  Em 1925, ocorreu uma crise na organização do futebol paulista, levou o Clube Atlético Paulistano a abandonar a APEA e criar a Liga de Amadores de Futebol (LAF), no que foi de imediato acompanhado pela Associação Atlética das Palmeiras e pelo Sport Club Germânia.

Com isso foi criado um impasse. As duas entidades diziam ser a representaste oficial do futebol do Estado de São Paulo. O São Geraldo aderiu à nova associação, disputando o campeonato da divisão “intermediária”. Nessa época, não havia lei de acesso. Os nove times considerados grandes, Club Atlético Paulistano, Sport Club Germânia, Sport Club Corinthians, Associação Atlética das Palmeiras, Britânia Atlético Clube, Clube Atlético Santista, Antártica Futebol Clube, Clube Atlético Independência e Paulista Futebol Clube, que compunham a divisão mais importante da LAF, jogavam entre si e não corriam o risco de rebaixamento.

O São Geraldo participava de uma divisão composta por clubes menores, muitos vindos do futebol de várzea. Mesmo se destacando mais que os rivais, não havia a perspectiva de ascender à divisão principal.

Em 1928 o time não foi bem no campeonato. Mas em 1929 foi campeão invicto. E nenhum de seus jogadores, no tocante a disciplina, foi sequer advertido. E para completar, o time só levou um gol em toda a competição. Aquela foi a última vez que o “alvinegro” da Barra Funda disputou o campeonato da LAF, a entidade que, desde a sua criação, mostrava-se favorável à permanência do amadorismo.

Tudo levava a crer que a LAF iria substituir a APEA como legítima representante do futebol de São Paulo, mas não foi isso que aconteceu. A entidade dissidente não conseguiu se consolidar no meio futebolístico. E os times foram um a um regressando à APEA, caso do Sport Club Corinthians, que ajudou a erguê-la em 1925 e tomou parte num único campeonato por ela patrocinado. Em 1927 voltou a APEA.

A LAF organizou somente três campeonatos paulistas. Dizem que seu insucesso se deveu em grande parte a insistência em manter o futebol amador. Era uma época em que os clubes cada vez mais se profissionalizavam e os atletas exigiam pagamento, pois não podiam viver só do futebol. Precisavam ter também outra ocupação para garantir o sustento da família.

A APEA, da boca para fora defendia o amadorismo, mas na prática fazia vistas grossas para a realidade que mostrava clubes e jogadores experimentando o profissionalismo. Os jogadores não queriam defender times da LAF, uma vez que só ganhavam o material de jogo (calção, camisa, meias, toucas e chuteira) para entrar em campo, ao passo que os times da APEA pagavam um salário paralelo ao trabalho de cada um fora do futebol.

O São Geraldo acabou por entrar na realidade e voltou a se filiar à APEA, participando de suas competições.  Mas pouco a pouco entrou em crise, enfrentou tensões internas e se desarticulou coletivamente. Sem resultados expressivos dentro de campo, restava viver de um discurso saudosista. Não se sabe ao certo quando o clube enrolou a bandeira, mas tudo indica que foi na primeira metade da década de 1940.

E ninguém sabe ao certo porque razões levaram ao fechamento. Desconfia-se que o desmonte do clube também teve relações ao novo contexto social e cultural. Como o futebol se tornou um esporte de massa, e a sua definitiva profissionalização implicou em um aumento na competitividade entre os grandes clubes, as associações de linhas de cor e de classe social perderam terreno.

Aliado a isso, os principais clubes de futebol aos poucos reformaram seus estatutos, retirado cláusulas que proibiam a entrada de homens de cor. O órgão oficial de comunicação da “Frente Negra Brasileira”, publicou que o jogador símbolo do ingresso do negro nos altos cenários do futebol foi Mateus Marcondes, atleta do Clube Espéria.

Teria sido ele a última “figura a aparecer vitoriosamente em nossos esportes, vencendo e convencendo os paredros do futebol bandeirante.”

Na década de 1930 praticamente todos os grandes clubes paulistas passaram a contratar jogadores negros. Mas não era permitido que tomassem parte em setores do clube destinados somente aos associados brancos.

Foi na época que grandes jogadores negros migraram para os grandes clubes. Bianco, o famoso “gorrinho encarnado” do Sul-América, transferiu-se para a Associação Atlética das Palmeiras. Talvez o caso mais emblemático tenha sido Petronilho de Brito, um típico jogador da várzea paulistana que, na concepção de Thomaz Mazzoni, trouxe pioneiramente para o “futebol dos grandes clubes o verdadeiro futebol da raça negra”.

Time de negro não passava para a primeira divisão do campeonato. Mas ao enfrentarem amistosamente tudo quanto era time de São Paulo, os de cor ganhavam sempre. Por isso ninguém queria jogar contra o São Geraldo.

Quem primeiro descobriu ali uma fonte de ótimos jogadores foi o Corínthians, que devagar foi passando a mão nos negros. Tirava um, depois outro até que destruiu o São Geraldo, contam os saudosistas. Pena que não tenham deixado o São Geraldo jogar a Primeira Divisão. Era um time de primeira categoria.

Em 1948, ao recordar os “maiores feitos do futebol brasileiro”, a folha “Mundo Esportivo“ mencionou o título do São Geraldo de campeão do Centenário da “Divisão Municipal”. A esse respeito, O “Clarim d’Alvorada” já tinha sido bem incisivo em sua edição de 26 de julho de 1931: “o São Geraldo é um clube que honra a coletividade negra no futebol paulista”. (Pesquisa: Nilo Dias)