Tinha
o apelido de "Kaiser" em razão de sua semelhança com o craque alemão Franz
Beckenbauer. E era também conhecido como “Forrest Gump” (pessoa que conta muita
estória, muito papo ou mentiras) do futebol brasileiro. Sua história vai
merecer um documentário que será apresentado ainda neste ano de 2018.
O
filme, dirigido por Louis Myles, produtor da BBC britânica em eventos
esportivos, como a Olimpíada de Londres e a Copa do Mundo de 2014, terá o nome
de “The Greatest Footballer Never to Have Played Football” (Kaiser: o Grande
Jogador de Futebol que Nunca Jogou Futebol).
De
acordo com o jornal inglês “ The Guardian”, o longa conta com entrevistas de Zico, Carlos Alberto
Torres (falecido), Júnior, Bebeto, Renato Gaúcho, e o próprio "Kaiser", que
afirma ter sido um jogador de talento, mas que decidiu não fazer uso disso.
Junto dos depoimentos, algumas partes serão encenadas, e o personagem principal
será interpretado pelo ator Eduardo Lara.
Em
2011, o programa “Esporte Espetacular”, da Rede Globo, exibiu uma matéria que
contava, com detalhes, como "Kaiser" conseguiu, por mais de 20 anos, ludibriar
diversos clubes brasileiros, entre eles, Botafogo, Flamengo, Bangu, Fluminense,
Vasco da Gama, América.
E do exterior, Puebla, do México, Independiente, da
Argentina, El Paso Patriots, dos EUA, Louletano, de Portugal e Gazélec Ajaccio, da
França, fazendo parte de seus elencos, mesmo sem praticamente ter disputado
partidas oficiais.
O
Ajaccio, humilde clube da Europa lhe preparou uma apresentação da qual ele para
sempre se lembrará. O estádio era pequeno, mas estava cheio de fãs. Viu que
havia muitas bolas no gramado. Ficou nervoso porque iriam descobrir que ele não
sabia jogar.
Entre
seus supostos feitos notáveis, "Kaiser" alega ter sido campeão Mundial
Interclubes pelo Independiente em 1984, fato não confirmado pela diretoria do
clube argentino.
Se
era um jogador que nunca jogou futebol, e em razão disso não tinha amizade com
a bola, ninguém duvida que foi um craque em se relacionar com algumas estrelas
do futebol brasileiro.
Aos
55 anos, Carlos "Kaiser" atualmente mora no Flamengo, no Rio de Janeiro. E depois
de muito tempo resolveu revelar as suas histórias. Pinóquio” era café pequeno
para ele. “Pior do que cara de pau, esse rapaz é o maior 171 do futebol
brasileiro”, brinca Ricardo Rocha, um dos amigos de “Kaiser”.
A
vida de Carlos Henrique Raposo, mais conhecido o “Kaiser”, merecia bem mais que
um simples documentário, e sim um filme longa metragem. Apesar
da sua história estar mais para outro sucesso do cinema americano,
"Prenda-me se for capaz".
Mas
o que ele fez foi fantástico. Por mais de 20 anos conseguiu enganar grandes
clubes brasileiros. Foi para a França, passou pelos Estados Unidos, fez uma
escala no México, sem praticamente ter entrado em campo para uma partida
oficial.
Ele
dava desculpas das mais estapafúrdias para não jogar. Em cerca de 20
anos de carreira, "Kaiser" entrou em campo poucos vezes para disputar uma partida
oficial. Não completou nenhuma. Muito menos no Brasil, onde ninguém o viu jogar. Em todo jogo ele dava “migué”. Quase sempre
saía machucado. Até em treino, se pudesse, saía machucado, admitiu.
Raposo
era a esperança da família de render algum dinheiro no futebol. Mas havia um
problema neste plano. Ele nunca quis jogar bola, de fato. A lenda de Carlos
“Kaiser” começou em meados dos anos 1970, quando ele atuava por equipes juvenis
do Botafogo.
O
ex-jogador Maurício, ídolo do Botafogo, na época, foi quem o levou ao clube alvi-negro. O vínculo
entre eles tinha nascido na infância e ganhou importância nos anos seguintes.
Em
1986, Raposo conseguiu, no futebol, o seu primeiro contrato ou, o que muitos
consideravam, seu primeiro golpe, já que foi convocado pelo simples fato de
estar ligado à uma figura do meio.
Quando
esteve no Flamengo, Raposo chegava aos treinos com um celular, o que, nesse
momento, demonstrava um status econômico superior. Então,
simulava uma conversa em inglês ao telefone fazendo com que acreditassem que
equipes europeias estavam interessadas em contratá-lo.
Apesar
de toda a equipe, dos jogadores e da parte técnica acreditarem nas suas
conversas em inglês, acabou desmascarado pelo médico do clube, que havia morado na Inglaterra, explicando que os diálogos de Raposo pelo
celular não faziam sentido.
Carlos
Kaiser sempre foi bem relacionado e fazia amizades com facilidade. Era amigo de
jogadores importantes do futebol brasileiro, como Carlos Alberto Torres, Ricardo
Rocha, Moisés, Tato, Renato Gaúcho, Romário, Edmundo, Gaúcho, Branco, Maurício,
entre muitos outros.
No
tempo em que ele enganava dirigentes e treinadores, os meios de comunicação
ainda não eram tão desenvolvidos. Não existia Internet, TV por assinatura
transmitindo ao vivo jogos de todo o mundo ou empresários circulando pelos
corredores dos clubes com DVDs editados de dezenas de jogadores.
E
“Kaiser” se aproveitava dessa falta de informação. Sempre que algum de seus
amigos famosos era contratado por um clube, ele era levado como contrapeso para
fazer parte do elenco. E assinava contrato de risco, mais curto, de normalmente
três meses. Mas recebia as luvas do contrato e ficava lá por esse período.
Ricardo
Rocha, seu grande amigo, contava aos risos: “É um amigo nosso, uma ótima
pessoa, um ser humano extraordinário. Mas não jogava nem baralho. O problema
dele era a bola (risos). Nunca vi ele jogar em lugar nenhum. É um “Forrest Gump”
do futebol brasileiro. Conta história, mas às 16 horas, num domingo, no
Maracanã, nunca jogou. Tenho certeza”.
Diz
saber que ele ia para o clube jogar e, na hora de entrar em campo para mostrar
alguma coisa, simulava contusão. Aí não participava, falava que era estiramento
e ficava de dois a três meses sem treinar. “É 171 nato”. (trambiqueiro,
no código penal 171 é estelionato)
O
goleador da Copa do Mundo de 1994 nos Estados Unidos, Bebeto, declarou: “Ter
uma conversa com ele era tão bom que, se você o deixasse abrir a boca, iria
pegar você e seduzi-lo. Você não conseguia evitar, era o fim”.
"Kaiser" tinha uma vantagem: alto, sempre teve um porte físico avantajado. Tinha pinta
de jogador. E puxava a fila nos treinos físicos.
Como
alegava que chegava fora de forma, conseguia ficar duas semanas só correndo em
volta do campo. O problema era quando a bola rolava. Aí entrava em cena a
segunda parte do plano.
Ele
mandava alguém levantar a bola e errava a jogada. Aí sentia o posterior da
coxa, ficava 20 dias no Departamento Médico. Não tinha ressonância (magnética)
na época. E
quando a coisa ficava pesada para o seu lado, tinha um dentista amigo seu que
dava um atestado de que era foco dentário. E assim ia levando.
Renato
Gaúcho, também grande amigo de “Kaiser”, conta que ele era um “inimigo” da
bola. A parte física era com ele. No coletivo combinava com um colega: “na
primeira jogada me acerta porque eu tenho que ir para o Departamento Médico”.
A
semelhança com Renato Gaúcho também era bem-vinda. Os dois se divertiam
bastante na noite. “Kaiser” confessa que se foi clone de alguém na vida, era do
Renato Gaúcho.
Os
dois se conheceram em 1983, ele jogava no Grêmio e ia muito ao Rio. E garante que a fama que Renato tem com as mulheres, perto dele não era nada.
Renato
Gaúcho, que era um dos jogadores de futebol brasileiro mais destacados da época,
o chamou de “o maior jogador de futebol de todos os tempos”.
A
tática era conhecida por vários companheiros, que encobriam a história. Afinal,
“Kaiser” era bem relacionado em outras áreas também. Na época os times
concentravam em hotel. Ele chegava três dias antes, levava 10 mulheres e
alugava apartamentos dois andares abaixo de onde o time ia ficar.
De
noite ninguém fugia de concentração, a única coisa que faziam era descer
escada. Tanto que tem treinador hoje que bota segurança no andar. Kaiser
frequentava as casas noturnas mais badaladas do Rio de Janeiro e aproveitava o
fato de ser jogador de futebol para se aproximar das mulheres.
Ele
mesmo conta que mulher era a coisa mais fácil, podia ser em espanhol, inglês,
francês. Porque jogador já tem esse assédio, e ele não se considerava um cara
feio.
Para
alguns dirigentes e treinadores, "Kaiser" não passava de um jogador azarado. E
assim ele conseguia ganhar tempo. Colocava no bolso um ou dois meses de
salário. Quando a situação começava a ficar difícil de ser sustentada, aproveitava outro amigo e trocava de clube. Assinava um novo contrato de risco,
recebia as luvas. E começava tudo outra vez.
“Kaiser”
garante que não se arrepende de nada que fez. E complementa: “Os clubes já
enganaram tantos jogadores, alguém tinha que ser o vingador dos caras”.
Para
não ser desmascarado, “Kaiser” precisava ter boas relações também com a
imprensa. Por isso, distribuía camisas do clube onde estava e passava algumas
informações.
Elogiado
pelos amigos famosos, ele aparecia em matérias acompanhado de adjetivos como "artilheiro" e “goleador”. Apesar disso, outras fontes revelaram que Raposo,
além de ser amigável, também comprava presentes para o pessoal da imprensa.
Assim,
os meios de comunicação davam respaldo à imagem de bom jogador que era vendida
aos clubes. Quando foi jogar no Bangu, um jornal da época deu à matéria sobre
sua contratação o título: “O Bangu já tem seu rei: Carlos Kaiser”.
O
jogador que não jogava, complementou: “Eu tenho facilidade em angariar
amizades, tanto que muitos da imprensa da minha época gostavam de mim, porque
nunca tratei ninguém mal”.
"Kaiser" encerrou sua carreira aos 39 anos, jogando pelo Ajaccio, clube da segunda
divisão da França, no qual ficou por longo tempo. O atacante garantiu que dessa
vez ele jogou de verdade, porém, não mais do que 20 minutos por partida, poucas
vezes por temporada.
Mas
reconhece que pelas oportunidades, pelos times que passou, se tivesse se
dedicado mais, teria ido mais longe na carreira. De certa forma, se arrepende
de não ter levado as coisas a sério. E garante, que se teve alguém que ele
prejudicou a vida toda, foi a ele mesmo.
Mais
experiente, Carlos Henrique não se arrepende do que fez, mas confessa que se
tivesse uma chance de voltar no tempo, a história seria diferente.
Atualmente,
e depois de ter desfrutado anos e anos de um salário de jogador de futebol que
não merecia, ele passa seus dias na academia como “personal trainer” para
mulheres. Com 55 anos de idade, ele já não consegue mais se passar como
jogador, porém continua sendo um atleta.
Em
uma das muitas histórias fantasiosas que rondam sua vida, Raposo disse que uma
vez esteve muito perto de fazer parte de um filme pornográfico. Ele acompanhou
seu primo para uma audição, e segundo disse, deixou uma boa impressão, tudo por
causa de seu bom papo e carisma.
Quase
teve uma participação no filme. “Toda a minha vida girou em torno do sexo”,
declarou, excluindo qualquer outro hobby que possuísse.
“Se
eu fosse a uma boate, e passava 10 minutos com uma menina, eu tinha que a levar
em algum lugar, fosse um banheiro, ou o primeiro cubículo que encontrava”,
disse ele. E explicou que agia assim por conta da forma que havia sido criado,
numa sociedade machista.
Um
dos maiores capitães de futebol que o Brasil já teve em sua história foi um
grande amigo de Raposo. E era ele quem permitia que “Kaiser” levasse uma vida
de luxo, apesar de ser um falso jogador.
Carlos Alberto
ofereceu a "Kaiser" um quarto em um hotel de Búzios, o “Saint Tropez”, para passar as festas de final de ano, como Natal e Ano Novo. A arte de enganar
pessoas não era apenas focada no ambiente do futebol, mas sim um modo de vida
para Raposo.
Ele
conseguiu perpetuar pequenos golpes no dia-a-dia, como fingir perder sua
carteira, dizer que o caixa eletrônico tinha prendido o seu cartão, entre
outros, para não pagar suas refeições.
Algumas
pessoas até dizem que ele realmente adotou o lema de “coma à vontade” nos
rodízios muito seriamente, comendo 70 fatias de pizza em um restaurante.
Um
dos maiores problemas de “Kaiser” apareceu quando se alistou no Bangu, cujo
proprietário era o Castor de Andrade, chefe de uma milícia. Este apresentou-o
ao clube e fãs como “A chegada do Rei”.
Nesse
encontro o treinador o obrigou a entrar num jogo, em que o Bangu perdia para o Coritiba.
Desesperado, “Kaiser”, ainda estava no aquecimento, prestes a entrar em campo, quando inventou uma briga fictícia com um torcedor por causa de uma suposta ofensa
gritada ao treinador.
Tudo
isso para que conseguisse ser expulso antes mesmo de começar a jogar. Como era
um gênio das mentiras, este falso jogador de futebol não deixava espaço para
erros.
Seus
companheiros de equipe gostavam dele, tinha amigos no camarim e também
conseguiu conquistar o público. Algumas dessas pessoas que gostavam dele foram
pagas para gritar seu nome quando o presidente do clube estava perto, bem como
os repórteres para falarem bem dele na mídia.
“Kaiser”
tinha várias maneiras de evitar encostar em uma bola de futebol, ato que
desmascararia toda a sua farsa. O principal método era fingir se lesionar nos
treinos, por isso ele pagava os mais jovens para dar alguma entrada difícil nele.
Ou
então, inventava uma suposta morte de sua avó, que devia ter pelo menos sete
vidas, afinal ele a matou diversas vezes para não entrar no campo. A arma de
sedução de Raposo era sua maneira de falar e o que ele expressava. Ele tinha
uma maneira de se comunicar que era única.
Como
muitas lendas que foram se estabelecendo ao longo do tempo, as circunstâncias
de vida que Raposo viveu naqueles 20 anos de sua vida já parecem surreais. Os anos
já se passaram, mas em sua memória permanecem histórias com detalhes
fantásticos.
Embora
tudo até pareça mentira, uma coisa que se tem certeza é que essa loucura toda
realmente ocorreu devido aos variados testemunhos que a sustentam. Sua história
de vida começou a se espalhar e se tornou famosa.
Carlos "Kaiser" também se comparou a Jesus Cristo, justificando suas ações quando disse: “Eu só
queria ser um esportista e não queria jogar futebol”.
E
acrescentou: “Se todas as outras pessoas queriam que eu fosse um jogador de
verdade, esse era um problema delas”. E continuou: “mesmo Jesus não conseguiu
agradar a todos, por que eu faria isso?”. (Pesquisa: Nilo Dias)
Carlos "Kaiser", junto dos ex-jogadores "Gaúcho" e Renato Gaúcho. (Foto: Divulgação)