Miguel
do Carmo, apelidado de “Migué“, nasceu
em 10 de abril de 1885 em Jundiaí, também no interior paulista, três anos antes
da abolição oficial da escravatura no Brasil, com a Lei Áurea, em 1888. Aos 15
anos de idade, junto com outros garotos e rapazes do bairro da Ponte Preta,
fundou o clube com o mesmo nome.
O
batismo do clube não tem relação com os negros presentes em sua criação, mas
sim com o bairro onde o time nasceu, chamado Ponte Preta graças à ponte da
linha férrea, de madeira escura, que cortava o local.
A
linha do trem, propositadamente, separava os bairros operários como o da Ponte
Preta, do centro e da elite. A maioria dos moradores negros da vila eram
funcionários da ferrovia. Foi por ali que o futebol chegou à cidade, por meio
de um imigrante escocês chamado Thomaz Scott, engenheiro da Companhia Paulista
de Estradas de Ferro.
A
proximidade com os imigrantes permitiu aos negros da região que o preconceito
fosse deixado de lado no momento de participarem das partidas disputadas nos
campos improvisados.
O
bairro da Ponte Preta era na época morada de população operária, formada
basicamente por chacareiros, artesãos e ferroviários. Era natural, então, que a
maior parte dos entusiastas que participaram das primeiras atividades da
agremiação estivesse nessa camada de trabalhadores braçais.
Miguel
era ferroviário, trabalhava como segundo fiscal de linha da Companhia Paulista
de Estradas de Ferro, em Campinas, e seria só mais um dos que se empolgaram com
o futebol, esporte que havia chegado recentemente ao país, não fosse pela cor
da sua pele.
A
situação era impensável naquele fim de século. Os times que jogavam futebol no
Brasil eram de clubes da elite branca. Alguns deles, inclusive, tinham regras
que proibiam explicitamente a presença de negros em seus quadros. Arthur
Friedenreich, um dos maiores atletas da era amadora do futebol, era filho de
pai alemão e mãe negra, alisava os cabelos crespos antes de entrar em campo.
O
berço pontepretano foi decisivo para que jogadores negros tivessem oportunidade
de defender as cores do time de Campinas logo nos primeiros anos de sua
existência, quando essa interação racial era proibida em outras associações
esportivas.
Miguel
do Carmo se casou, teve 10 filhos, mas morreu jovem, aos 47 anos, em 1932,
depois de passar por uma cirurgia no estômago. Além disso, pouco se sabe a
respeito dele.
Por
muito tempo acreditou-se que Francisco Carregal havia sido o primeiro negro a
atuar em um time do futebol nacional, ao defender o Bangu em 1905.
Porém, o historiador e professor da PUC-Campinas José Moraes do Santos Neto defende que o pioneirismo é de Miguel do Carmo, da Ponte Preta. Até hoje, o Vasco da Gama e Bangu, times do Rio de Janeiro, disputam o pioneirismo da democracia racial no futebol que, de fato, é da Ponte Preta.
Porém, o historiador e professor da PUC-Campinas José Moraes do Santos Neto defende que o pioneirismo é de Miguel do Carmo, da Ponte Preta. Até hoje, o Vasco da Gama e Bangu, times do Rio de Janeiro, disputam o pioneirismo da democracia racial no futebol que, de fato, é da Ponte Preta.
De
acordo com o livro "O Negro no Futebol Brasileiro", do jornalista
Mário Filho, publicado em 1947, em 1923, o Vasco chocou o Rio ao vencer
Flamengo, Botafogo e Fluminense, clubes da elite carioca, e conquistar o
campeonato local com um time formado, principalmente, por negros e mulatos.
Mas,
antes disso, em 1905, o Bangu foi o primeiro clube a aceitar um jogador negro,
o apoiador Francisco Carregal.
Miguel
do Carmo, entretanto, jogou pela Ponte Preta até 1904, quando foi transferido
pela Companhia Paulista para Jundiaí, como conta o historiador José Moraes dos
Santos Neto, responsável pela pesquisa que pretende realinhar a cronologia da
participação de negros no futebol.
Quando
começou busca documental dos primeiros tempos da Ponte Preta, se sabia das escalações
dos times, mas ninguém tinha conhecimento de quais os atletas eram brancos ou
negros.
Houve
então, uma verdadeira investigação, família por família. Mas foi encontrado apenas
um documento de Miguel do Carmo: uma carteira de registro, com foto, de seu
emprego como ferroviário.
Além
dessas, há poucas informações sobre o meio-campista. A notícia de que seria o
primeiro negro do futebol brasileiro mexeu com os fanáticos ponte-pretanos, que
passaram a vasculhar publicações antigas à procura de novos dados sobre o
jogador.
Existe,
inclusive, a suspeita de que outros jogadores daquele time de 1900 fossem
descendentes de africanos. Caso de Alberto Aranha. Haviam duas famílias Aranha
em Campinas, uma no bairro Ponte Preta, de negros, e outra no Cambuí, região nobre.
Ele
pode ter sido parente de Benedicto Aranha, um contador negro que atuou no clube
a partir de 1908.
A
falta de certeza se dá pela pouca documentação encontrada. Os jornais ignoravam
o novo esporte. A imprensa só começou a cobrir o futebol em 1908, quando houve
uma tentativa frustrada de criação de uma liga competitiva.
Relegado
até agora, Miguel do Carmo não muda o meio ou fim de uma história que inclui
Leônidas e Pelé. Mas dá a ela um novo início.
Em
Campinas não havia uma sociedade tão elitista e fechada como nos clubes sociais
de São Paulo e do Rio, conta o diretor e curador do Museu Afro Brasil, Emanoel
Araújo. “A cidade tinha uma comunidade negra muito grande", contou.
Isso,
porém, não evitou que a equipe da Ponte Preta fosse hostilizada por conta da
grande presença de negros e mulatos no time e entre os torcedores. Nos estádios
em que o time se apresentava como visitante pelo interior do Estado, era comum
ser recebida com os gritos de "macacos" e "macacada".
A
torcida, entretanto, preferiu transformar as ofensas em apelido e adotou a
macaca como mascote do clube. Entre os torcedores da Ponte existe de tudo:
mulheres, crianças, negros e mulatos.
Houve
uma mistura entre a elite e o povão, uma quebra da hierarquia social. Na hora
do gol, o médico abraça o cara que construiu o consultório dele, diz o
historiador. "Essa é uma característica do futebol que é ainda mais marcante
na Ponte."
A
Ponte Preta pretende capitalizar com o reconhecimento do que chama de
"primeira democracia racial", por aceitar jogadores negros em seus
quadros desde os jogos iniciais de sua história de 119 anos.
Em
2003 foi enviada uma carta à Fifa, informando a entidade sobre a participação
de Miguel do Carmo no time formado após a fundação da equipe, em 1900.
Em
um dos trechos do dossiê enviado à Fifa, Santos Neto cita o time formado no
Bairro da Ponte Preta, em Campinas. Leia trecho abaixo:
“(…)
Os meninos e rapazes jogadores de futebol eram brancos, negros e mulatos. Entre
os jovens tínhamos quatro negros e dois mulatos, mas um deles se tornou jogador
do primeiro time da Ponte Preta após sua fundação em 1900, seu nome era Miguel
do Carmo.
Em
1900 esses rapazes resolveram fundar um time de futebol, para tanto contaram
com o apoio do alemão Theodor Kutter, do austríaco Nicolau Burghi, do brasileiro
descendente de alemães Hermenegildo Wadt e do brasileiro Capitão João Vieira da
Silva.
O
objetivo era fundar uma associação sem preconceito de raça ou religião para
praticar o futebol . Em 11 de agosto de 1900 é fundada a Associação Atlética
Ponte Preta (…)”.
A
entidade respondeu com carta assinada pelo então chefe de relações públicas
Federico Addiechi, mas reconhecendo a Ponte Preta apenas como “um exemplo de
igualdade, fraternidade e não-discriminação, através de seu time de futebol por
mais de um século”.
O
clube voltou a procurar a entidade que comanda o futebol mundial em busca do
reconhecimento oficial e foi instruído a montar um dossiê completo sobre o
jogador para que os documentos pudessem ser avaliados.
O
clube tenta viabilizar isso financeiramente. Uma das ideias é que um livro seja
escrito sobre a história, o que facilitaria o financiamento através de lei de
incentivo à cultura. Os dirigentes acham importante ser reconhecido por isso,
pois beneficiaria muito a marca Ponte Preta.
A
justa homenagem ao primeiro negro do Brasil a jogar num time de futebol,
inaugurando assim a primeira Democracia Racial, está também cristalizada na venda
de camisas personalizadas com o nome de Miguel do Carmo.
Em
2014, em comemoração aos 114 anos da Ponte Preta, Geraldo do Carmo, filho de
Miguel do Carmo, recebeu o título de “Cidadão Pontepretano”, em nome do pai,
que tem o rosto estampando em selo.
No
Jardim Garcia tem uma escolinha que leva o nome de Geraldo do Carmo, que foi zagueiro
do Guarani, nos anos 50. Ele foi o único dos filhos de Miguel que jogaram
futebol profissionalmente. Seus netos, Gabriel e Lucas tentaram seguir a
carreira do avô e do bisavô, mas não tiveram êxito.
Geraldo
ficou marcado pela sua passagem pelo Guarani, nos anos 50. Ele contou que havia
acertado, em uma sexta-feira, com o Moyses Lucarelli, então homem forte do
clube, para jogar pela Ponte Preta.
Mas
no dia seguinte, o Guarani apareceu na sua casa e o contratou para resolver os
problemas defensivos. No domingo, entrou em campo. Mas na estreia seu time
perdeu por 10 X 0.
A
mãe de Gabriel e Lucas, a jornalista Raquel do Carmo, acompanha a luta do filho
e do sobrinho, enquanto busca resgatar a memória do avô, que ela nem chegou a
conhecer – Miguel do Carmo morreu quando Geraldo, pai de Raquel, tinha apenas
5.
Um
grupo de torcedores costuma levar faixas ao estádio Moisés Lucarelli com o
inscrito: “Primeira democracia racial no futebol brasileiro – Miguel do Carmo –
Ponte Preta”. Até música o jogador ganhou, um lundu com baião composto por
Jorge Araújo: “Sem preconceito a Ponte iniciava / Em sua camisa já brilhava / O
preto e o branco com amor”.
O
título de time mais antigo é polêmico. O clube, fundado em 11 de agosto de
1900, intitula-se o mais antigo do Brasil. Considera o fato de nunca ter
paralisado o futebol, o que diz ter acontecido com o Rio Grande, criado 23 dias
antes. Os gaúchos negam a interrupção do esporte, e isso é verdade, o clube
nunca deixou de praticar o esporte.
Em
seus 119 anos de história, a Ponte Preta nunca conquistou um título importante.
Mesmo assim, mantém uma das mais apaixonadas torcidas de São Paulo. E, hoje,
seus seguidores exaltam, orgulhosos, o fato de o clube ter sido o primeiro a
romper com o racismo no futebol brasileiro. “Esse troféu ninguém nos tira”,
afirma o fonoaudiólogo Carlos Burghi, descendente de fundadores da Ponte.
A
partir de meados da década de 10, a Ponte passou a ser denominada a “Veterana”,
porque, entre os muitos clubes que surgiram na virada do novo século em
Campinas, foi o único que sobreviveu e, até por isso, acabou sendo o mais
antigo. (Pesquisa: Nilo Dias)