Pouca
gente sabe, mas um pequeno clube de São Paulo, o Atlético de Sorocaba, foi o
único time brasileiro a jogar até hoje na Coreia do Norte. Poucos brasileiros
têm a possibilidade de visitar a Coreia do Norte. Segundo a embaixada do Brasil
em Pyongyang, apenas 65 pessoas do país entraram lá nos últimos anos.
De
2009 a 2015, o Atlético Sorocaba fez quatro viagens à Coreia do Norte. Lá,
viveu o impensável: foi confundido com a seleção brasileira, viu 30 mil pessoas
não conseguirem entrar em um estádio já abarrotado por outras 80 mil, levou um
atleta americano na delegação, padeceu em silêncio com a arbitragem, chegou a
temer reações a eventuais vitórias. Hoje, tudo que resta ao clube é a memória:
o time foi fechado em 2016.
Entender
como um modesto clube do interior brasileiro foi parar na Coreia do Norte leva
necessariamente à figura de Sun Myung Moon, o Reverendo Moon.
Nascido
em uma região do norte coreano, quando a península ainda não estava dividida,
ele foi o fundador da “Igreja da Unificação”, um grupo religioso que angariou
milhões de seguidores, colecionou controvérsias e teve forte presença no Brasil
sobretudo nos anos 90 – adquirindo mais de 80 mil hectares de terra no interior
do Mato Grosso do Sul e levando centenas de asiáticos para lá.
Moon
ficou preso por cerca de um ano nos Estados Unidos, punido por sonegação
fiscal, respondeu a acusações semelhantes no Brasil e foi alvo de uma CPI -
encerrada com a sugestão de que o melhor para o Estado do Mato Grosso do Sul
era se aliar aos empreendimentos do coreano.
Ficou
famoso por promover casamentos coletivos entre seus, fiéis e se viu envolvido
em boatos de que praticava lavagem cerebral e servia vinho misturado a seu
sangue.
Enquanto
isso expandia seus negócios, que incluíam montadoras de carros e empresas de
comunicação. E, amparado por um discurso de propagação da paz, chegou ao
futebol. Apaixonado pelo esporte, ele escolheu dois clubes para investir no
Brasil: o Cene (MS) e o Atlético Sorocaba.
Apesar
de anticomunista ferrenho, o reverendo mantinha boas relações com Kim Il-Sung,
avô do atual líder Kim Jong-Un. Em 2009, com a inédita classificação da Coreia
do Norte para a “Copa do Mundo”, na África do Sul no ano seguinte, Moon teve a
ideia de levar o Atlético, de Sorocaba a realizar amistosos no país asiático,
dentro
do
que classificou como missão de paz entre os povos.
O
Reverendo Moon adquiriu o clube paulista e passou a injetar dinheiro e
estrutura nele. Os resultados logo apareceram. Da terceira divisão paulista em
2001, pulou para a primeira em 2003.
Foi
nesse cenário que Moon montou um plano maior: usar o Atlético Sorocaba para
levar o futebol brasileiro além das fronteiras mais fechadas do planeta.
O
reverendo, apesar de anticomunista, tinha um canal de comunicação aberto com a
ditadura norte-coreana. No começo dos anos 90, reunira-se com Kim Il-Sung – avô
do atual líder do país, Kim Jong-Un.
A
oportunidade de ouro surgiu em 2009. A Coreia do Norte classificara-se para a
“Copa do Mundo” do ano seguinte, na África do Sul, e tinha interesse em
enfrentar equipes de outros lugares do planeta.
Mas
seu regime político praticamente inviabilizava a diplomacia necessária para a
realização de amistosos. Com a intermediação do Reverendo Moon, porém, seria
possível. E lá foi o Atlético Sorocaba.
A
delegação chegou à Coreia do Norte pela China – única via aérea para o país. O
avião era norte-coreano. E assustou os passageiros. Rachaduras dentro da
aeronave estavam tapadas por cola em massa.
Os
atletas se perguntavam, se alguém já tinha visto um avião com Durepoxi? E
Sidnei Gramático, o “Passarinho”, ex-massagista do Atlético Sorocaba, contou
que viu trincas, remendos com Durepoxi. E que todos ficaram muito tensos.
No
aeroporto de Pyongyang, telefones e passaportes foram confiscados. De lá, o
grupo rumou para o monumento em homenagem a Kim Il-Sung, onde um representante
do clube depositou flores para a imagem – e o restante do grupo fez um gesto de
reverência.
Nos
dias seguintes, todos os passeios tiveram acompanhamento de guias definidos
pelo governo. Os destinos, invariavelmente, eram pontos de celebração da
ideologia norte-coreana e de culto aos líderes. A propaganda militar era
permanente.
Um
dia antes do jogo, os atletas foram ao estádio. E ficaram impressionados com
sua imponência. Lá, treinaram sob olhares da seleção norte-coreana. Quando foi
a vez de os donos da casa fazerem sua atividade, porém, os brasileiros tiveram
que sair.
Mas
o choque maior veio no dia do jogo. Ao se aproximar do estádio, a delegação do
Atlético Sorocaba começou a perceber que aquele não seria um dia normal.
Uma
multidão cercava o local e vibrava com a chegada do ônibus. Os atletas se
questionavam: por que tamanha euforia? Minutos depois, ao entrar em campo e ver
BRA no telão, eles entenderam o que acontecia: para o povo da Coreia do Norte,
ali estava a “Seleção Brasileira”.
O
jogador Klayton contou que foi o primeiro a entrar no gramado. Espantado, ao
ver tanta gente, chegou a dizer “Nossa”. O estádio estava extremamente lotado.
E além dos 80 mil, que estavam dentro, ficaram 30 mil pessoas fora.
No
placar eletrônico, não estava escrito Atlético Sorocaba. Estava escrito Brasil,
a sigla BRA. E a torcida esperava ver algum jogador bem famoso.
O
começo do jogo trouxe novos espantos para os brasileiros. Quando eles tinham a
bola, a torcida silenciava por completo. Não havia vaias, murmúrios, conversas:
nada. Era um bloco de silêncio impenetrável. O ambiente só mudava quando a
seleção norte-coreana atacava. Aí explodia o som de incentivos ao time.
O
jogo foi equilibrado, com os norte-coreanos tentando pressionar sobretudo no
primeiro tempo. E enquanto a bola rolava, os brasileiros tentavam fugir de um
raciocínio que os perseguia: se eles podiam vencer a partida sem colocar sua
segurança em risco.
Foi
um jogo complicado. A delegação tinha 30 pessoas. Ninguém tinha uma ideia muito
firme do que estava se passando, do que poderia acontecer ou não.
O
clima foi tenso na partida. O jogo terminou empatado por 0 X 0.
Diplomaticamente, foi o resultado perfeito, embora o Reverendo Moon quisesse
que o time vencesse.
Só
que depois ele se contentou. E ofereceu um excelente almoço no palácio dele na
Coreia do Sul e disse que foi melhor ter empatado, porque assim não haveria
problema para sair.
Havia
muitos militares na arquibancada. Mas, a delegação tinha a proteção da
embaixada brasileira. Para sorte do clube, o então presidente Lula, em junho de
2009, havia estabelecido a embaixada brasileira em Pyongyang.
O
Atlético Sorocaba saiu do Brasil em novembro de 2009. Foi até Pequim e lá
conseguiu um visto de cinco dias para Pyongyang.
Todo
o corpo diplomático esteve no aeroporto para receber a delegação, como se
estivesse recebendo a “Seleção Brasileira”.
A
grande surpresa aconteceu no dia 5, quando a equipe se dirigiu ao estádio e
teve que passar por uma multidão de 30 mil pessoas, que se aglomerava do lado
de fora da arena, já ocupada por 80 mil espectadores.
Foi
uma grande emoção para todos os jogadores, atletas muito simples, embora alguns
já tivessem passado por clubes renomados, como o Santos.
Entre
as dificuldades, além do peso da responsabilidade em jogar diante dessa
multidão, estava o fato de que o gramado era sintético, tipo de campo onde o
Atlético, de Sorocaba nunca havia jogado.
O
ex-técnico de futebol Eduardo Maragon, convidado a participar da partida contra
a Coreia do Norte, deu declarações bem peculiares sobre o evento.
Disse
que quando foi cumprimentar o treinador da Coreia do Norte, eles tomaram aquilo
como uma ameaça. Surgiram militares de todos os lados. Não era costume deles.
O
jogo chamou tanto a atenção da mídia que foi transmitindo ao vivo por várias
emissoras, incluindo a televisão da FIFA.
No
ano seguinte, na África do Sul, a Coreia do Norte acabou sendo sorteada para
integrar o mesmo grupo do Brasil. Quando houve o jogo entre as duas seleções,
os norte-coreanos perderam por 2 X 1.
No
lendário jogo do dia 5 de novembro, uma das maiores surpresas foi constatar
como os dois times foram apresentados no placar eletrônico: DRK (República
Democrática da Coreia) X BRA (de Brasil). O Atlético Sorocaba jogou de
amarelo!"
Em
2010, na segunda viagem, o Sorocaba, um amistoso comemorativo a posse do novo
presidente, Kim Jong-um, o time não teve tanta sorte. Perdeu de 1 X 0, com um
gol de pênalti absurdamente inexistente, marcado pelo árbitro, que era
norte-coreano.
Dessa
feita foi uma realidade diferente daquela experimentada em 2009. O Atlético
Sorocaba não foi tratado como seleção brasileira, e o interesse no futebol
parecia menor depois do fracasso do país na Copa – sobretudo pela derrota de 7
X 0 para Portugal.
Mesmo
assim, cerca de 40 mil pessoas foram assistir à partida no estádio. O público
parecia diferente: menos militares, mais mulheres. Mas a principal novidade
estava dentro de campo.
E
portava um apito. O árbitro, norte-coreano, levou o time brasileiro à loucura –
favoreceu a seleção local do começo ao fim do jogo. E os visitantes tiveram que
aceitar calados.
O
time que enfrentou os coreanos tinha Carlos Carioca - Jamesson (Leandro Silva)
- André Silva - Celso, Marcão e Assis. Fábio Baiano - Sandro e Leandro Diniz
(Danilo). Adriano e Luan (Diego Ratinho).
Naquele
ano, a equipe também fez mais duas partidas amistosas: em Pequim e em
Khabarovsk, no Extremo Oriente russo, em 30 de dezembro, contra o SKA.
Fora
do campo, toda a equipe e a comissão técnica do Sorocaba fizeram vários
passeios pela cidade e seus arredores. Ao contrário do que divulgou a mídia
ocidental, em momento algum o time se sentiu constrangido ou cerceado pelas autoridades
norte-coreanas.
O
ex-presidente do clube garantiu que conversou normalmente com as pessoas na
rua, posou para fotos e, apesar do cerimonialismo típico dos orientais,
sentiu-se benvindo em todas as ocasiões.
Embora
falasse coreano, o dirigente procurou se fixar no esporte. Caminhou horas pelas
ruas de Pyongyang sem problema nenhum. Ao chegar, representantes do governo
ficaram com seu passaporte, mas conseguiu levar a máquina fotográfica.
Caminhou
de duas a três horas, entrou em pequenos mercados. O brasileiro é muito bem
recebido, na Rússia, na China, na Coreia do Norte.
A
delegação teve pelo menos um dia de passeio dirigido, quando foram conduzidos
por um ônibus e funcionários do governo que falavam espanhol.
A
comitiva brasileira não teve qualquer problema com alimentação na Coreia do
Norte, embora, por precaução, tivessem comprado muitos alimentos em Pequim,
antes do embarque para Pyongyang.
Além
disso, as compras para o lanche da tarde e da noite eram feitas nos
supermercados das embaixadas, embora ninguém notasse qualquer problema de
abastecimento nas lojas abertas ao público.
A
terceira viagem do clube de Sorocaba para a Coréia do Norte aconteceu em 2011,
desta vez sob o comando do técnico Fernando Diniz. Foram dois jogos: derrota de
1 X 0 no primeiro e empate por 0 X 0 no segundo.
Os
brasileiros enfrentaram muitos jogadores que tinham disputado a Copa de 2010.
Não tiveram temor algum e jogaram para ganhar. "Foi uma experiência muito
interessante, em um país muito fechado, com controle sobre tudo", recordou
Diniz.
Aquela
foi a última vez em que o Atlético Sorocaba levou sua equipe profissional à
Coreia do Norte. Depois, o clube só retornou ao país em 2015, mas com a equipe
sub-15. E com um “inimigo” na delegação.
O
meio-campista Pedro Lutti nasceu em Miami. Tem pais brasileiros e só morou em
seu país de origem no primeiro mês de vida. Viajou à Coreia do Norte com
documentação brasileira.
E
teve que aguentar gracinhas dos colegas de time, que ficavam dizendo que iam
contar que ele era americano, que não são bem vindos ao país.
O
time sub-15 participou de um torneio com equipes da Coreia do Norte, Coreia do
Sul, China e Croácia. Terminou em terceiro, depois de também sofrer com a
arbitragem.
Em
2015, os garotos já enfrentaram restrições menores do que a dos profissionais
que os antecederam. Puderam, por exemplo, entrar com telefones celulares no
país – porém, não conseguiam acesso à internet.
No
hotel, até descobriram um jeito de telefonar para o Brasil. Tiveram que juntar
moedas quando chegou a conta, que foi complementada pela diretoria do Atlético
Sorocaba. Só um dos telefonemas, de cinco minutos, custou 50 dólares.
Com
a morte do reverendo Moon em setembro de 2012, a situação financeira do clube
foi se agravando paulatinamente, o que obrigou o Sorocaba a se desligar da
Federação Paulista.
Fora
do futebol profissional desde o final de 2016, o Atlético, de Sorocaba ainda
mantém um centro de treino que é considerado um dos mais modernos do país.
É
uma estrutura que muito clube grande não tem: quatro campos, dois hotéis,
piscina aquecida e academia em um terreno que tem até um lago. A Argélia ficou
lá na Copa de 2014. Em um dos troféus que repousam no local, marimbondos
iniciaram a construção de uma casa. É a imagem do abandono.
Em
frente à sede do Atlético Sorocaba, a água que jorrava de uma fonte, ornada com
uma pequena bola de futebol no topo, era iluminada em amarelo e vermelho – as
cores da equipe. Hoje, a fonte, literalmente, secou. Está desativada – a
exemplo do futebol do clube.
Por
ironia, o centro do Sorocaba é utilizado hoje pelo seu maior rival na cidade, o
São Bento, que subiu há pouco da série C para a B do Brasileirão. Seu técnico
Paulo Roberto (de novo a ironia) era um dos jogadores do Sorocaba na lendária
partida de 2009 na Coreia do Norte. (Pesquisa: Nilo Das)
Seleção da Coréia do Norte e Atlético Sorocaba, posaram juntos na foto de 2011.