Em 1909, a literatura policial e esportiva falava de um fantástico “fullback” pela esquerda, que se chamava Dinorah de Assis. Foi ele quem deu início a uma série fantástica de jogadores canhotos que vestiram a camisa número 4 do Botafogo. Depois dele veio o argentino Basso, que, segundo consta, inspirou o futebol de Nilton Santos, considerado por muitos o maior lateral esquerdo do mundo.
O interessante é que Nilton Santos jogou na seleção brasileira até os 38 anos de idade, quando se sagrou bicampeão mundial no Chile, jogando sempre na lateral esquerda, posição em que nunca atuou no Botafogo. No alvinegro era quarto-zagueiro.
Depois de Nilton, veio Sebastião Leônidas, que foi cortado da seleção campeã do Mundo em 1970, por contusão, dias antes do embarque para o México. Ele foi o autor de uma das mais belas jogadas já vistas no futebol. Num jogo em 1968, em que a Seleção Brasileira goleou a Argentina por 4 X 1, depois de um olé brasileiro de quase 60 passes, um zagueiro argentino deu um chutão para cima, caindo a bola verticalmente na intermediária brasileira. Leônidas amorteceu a bola fazendo-a deslizar pelo seu corpo inteiro até deixá-la quieta na grama.
Mais tarde, chegou Mauro Galvão, que igualmente vestiu a camisa 4. E ainda Gonçalves, que teve grande destaque no Botafogo. Tudo isso motivou o eterno Nelson Rodrigues a perguntar: “Será que é o Dinorah quem sempre veste a camisa quatro do Botafogo?”
Dinorah jogou no tempo do amadorismo, quando a bola era chutada com o pé e com o coração. Era zagueiro, mas tinha habilidade suficiente para também atuar no ataque tão bem quanto na defesa.
Sua vida foi marcada pela tragédia. Dinorah era irmão do aspirante Dilermando de Assis, de 17 anos, que envolveu-se amorosamente com Ana Sólon, de 30 anos, mulher do autor de “Os Sertões”, Euclides da Cunha. Quando soube do fato, o escritor foi até a casa do amante da esposa, em Piedade, subúrbio do Rio, disposto a matar o homem que o fez ser trocado. Levou a pior e ainda alvejou um inocente.
Tudo aconteceu no domingo, 15 de agosto de 1909, na casa de número 214 da Estrada Real de Santa Cruz, na Piedade, Rio de Janeiro. Um homem agitado e nervoso bateu palmas no portão e foi recebido pelo jovem Dinorah de Assis, a quem manifestou o desejo de falar com o dono da casa, Dilermando de Assis, aspirante do Exército.
Vai logo entrando na sala de visitas, quando saca de um revólver e diz: “vim para matar ou morrer!”. Entra no interior da casa e atira duas vezes em Dilermando que, atingido, cai. Dinorah, vendo o irmão ferido, tentou arrebatar a arma de Euclides. Ouviram-se mais dois disparos. Outro tiro e Dinorah foi atingido na coluna vertebral, junto à nuca.
Dilermando, mesmo ferido, conseguiu apanhar o revólver, atirou duas vezes sem atingir Euclides. Este aperta o gatilho de novo e recebeu um tiro de Dilermando que lhe feriu o pulso. Duelo de vida e morte. Tiros de ambos os lados e um projétil atingiu o pulmão direito de Euclides, que caiu morto ao solo. Assim aconteceu o que se denominou "A Tragédia da Piedade".
Apesar de tudo, Dinorah conseguiu recuperar-se rapidamente do ferimento e já estava pronto para jogar contra o Fluminense sete dias depois do ocorrido, fato que o levou a entrar definitivamente para a história do popular clube carioca. Quando entrou em campo para aquele jogo, alguns torcedores o vaiaram, mesmo nada tendo a ver com a morte do escritor Euclides da Cunha.
E não foi só. Jogou todo o campeonato de 1910, ano em que o Botafogo conquistou o primeiro título com o nome de Botafogo de Futebol e Regatas, sucessor do Botafogo Football Club, mesmo com uma das balas alojada na coluna vertebral, junto aos pulmões. Em 1910, Dinorah fez dois gols e foi fundamental, mas no ano seguinte não conseguiu apresentar o mesmo rendimento. Foi da linha para o gol e aposentou-se em 25 de junho, no terceiro ano de carreira, com os movimentos comprometidos.
Dinorah participou da maior goleada registrada no futebol brasileiro, quando o Botafogo goleou o S.C. Mangueira por 24 X 0, no dia 30 de maio de 1909. O Mangueira era um modesto time da zona norte do Rio que desapareceu em 1924, e nada teve a ver com a escola de samba. Nesse jogo Dinorah marcou um gol.
O Botafogo jogou com Coggin - Pullen I e Dinorah – Rolando - Lulú e Pullen II – Henrique - Flávio Ramos – Monk - Gilbert e Emanuel Sodré Viveiros de Castro. Os gols de Gilbert (9), Flávio (7), Monk (2), Lulu (2), Raul (1), Dinorah (1) e Henrique e Emanuel (1 cada).
A quarta bala disparada por Euclides da Cunha, que atingiu Dinorah junto à nuca, foi minando aos poucos a sua saúde e, quatro anos depois do episódio, em 1913, o deixou hemiplégico para o resto da vida. Dinorah não só foi obrigado interromper a sua carreira na Marinha, como também - o que mais lamentava -, não pode mais jogar futebol pelo Botafogo, sua maior paixão.
Depois de sete anos de abandono, doenças e bebedeiras, Dinorah de Assis, com apenas 31 anos de idade, deu cabo à vida em 1921, afogando-se no cais do porto da cidade Porto Alegre (RS), para onde havia se mudado, depois que o irmão Dilermando foi servir em Bagé. Morria deste modo a vítima esquecida e inocente do episódio conhecido como ‘A Tragédia da Piedade’, por ter o último ato acontecido naquele bairro da Zona Norte do Rio de Janeiro.
Quanto a Dilermando de Assis, foi absolvido a 5 de Maio de 1911, casando-se com Anna sete dias depois, a 12 de Maio. O casal teve quatro filhos, mas o relacionamento durou apenas 14 anos. Dilermando viveu em muitas cidades ao serviço do Exército e foi promovido até ao posto de General.
Entretanto, Solon, filho mais velho de Anna e Euclides, delegado no Acre, foi assassinado numa tocaia, na floresta em 1914. Dois anos após este acontecimento, Quidinho (Euclides da Cunha Filho), aspirante da Marinha, encontrou-se a 4 de Julho de 1916 no Cartório do 2º Ofício da 1ª Vara de Órfãos, no Rio de Janeiro, com o responsável pela morte de seu pai.
Puxou a arma e feriu Dilermando de Assis. Logo após este novo atentado, Dilermando reagiu ali mesmo e matou o filho da amante com três tiros. Novo escândalo, nova absolvição, mas Dilermando ficou para sempre com um rasto de sangue atrás de si.
Dilermando abandonou Anna em 1926, com cinco filhos. Ela estava com 50 anos, ele com 36. Anna e Dilermando morreram no Rio de Janeiro, em 1951: ela no mês de Maio, com um cancro, aos 74 anos, e ele de ataque cardíaco, em Novembro, aos 63 anos de idade.
Este triste episódio deu origem à mini-série ‘Desejo’, encenada pela Rede Globo, em 1990, tendo Tarcísio Meira interpretado Euclides da Cunha, Guilherme Fontes interpretado Dilermando e Vera Fischer interpretado Anna Emília Solon da Cunha. (Pesquisa: Nilo Dias)
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