Quem
acredita em Justiça? Muito pouca gente. Motivos são raros para que se acredite
nisso. Basta lembrar a morte do menino Kevin Beltrán Espada, de apenas 14 anos
de idade, ocorrida em 20 de fevereiro do ano passado, num jogo de futebol no
Estádio Jesús Bermudes, em Oruro, Bolívia, valendo pela “Taça Libertadores da
América”.
O
menino teve sua vida ceifada pela irresponsabilidade de alguns delinquentes que
se dizem torcedores do Corinthians Paulista, pertencentes a torcida organizada
“Gaviões da Fiel”, que jogaram um sinalizador naval em direção a torcida do San
José, time adversário.
Na
ocasião 12 corinthianos foram presos pela Polícia boliviana e mantidos em
cárcere por seis meses e depois colocados em liberdade. Com certeza nem todos
os 12 eram culpados, mas também não se pode afirmar que a totalidade era
inocente. Pelo menos dois deles tinham pólvora nas mãos, e ajudaram a colocar o
sinalizador para dentro do estádio, o que também se configura como crime.
Tanto
é verdade que no retorno ao Brasil alguns deles se envolveram em brigas em
estádios e na recente invasão do Centro de Treinamento do próprio Corinthians.
No Brasil, houve uma tentativa fraudulenta de colocar em um “laranja”, menor de
idade, a responsabilidade pelo crime. E o processo no Brasil acabou arquivado o
ano passado.
Agora,
que o menor completou 18 anos, seu nome foi revelado. Trata-se de Hélder Alves
Martins, que vive em liberdade no Brasil, já que seu processo foi arquivado.
Atualmente trabalha em uma rede de cinemas e pretende fazer vestibular para
Engenharia Macatrônica.
Ele
não vai mais aos jogos do Corinthians e nem à quadra da uniformizada, já que
foi acusado de ter levado os sinalizadores para Oruro, sem autorização da
diretoria.
O
próprio clube paulista, que merecia uma punição rigorosa e não sofreu, se
colocou ao lado da bandidagem, dizem que até pagando advogados e conseguindo
toda uma pressão política. A única coisa que queriam era tirar logo da Bolívia
os 12 torcedores e trazê-los para o Brasil.
Existem
fortes indícios de que o processo foi uma farsa. Na época da morte de Kevin,
Roger Pinto Molina, senador de oposição na Bolívia, estava refugiado na
embaixada brasileira. Durante o processo, cogitou-se que a intervenção direta
dos dois governos em ambos os casos sugeririam uma troca de favores.
No
fim, o político deixou a Bolívia de maneira clandestina, autorizado pelo
ministro Eduardo Saboia, o mesmo que negociou a libertação dos 12 corintianos.
Além
disso, o caso foi acompanhado de perto por autoridades de peso. Mário Gobbi,
presidente do Corinthians, reuniu-se com dois ministros de Dilma para pedir
ajuda. Depois da soltura dos brasileiros, Evo Morales, presidente boliviano,
admitiu que teve influência no desfecho do caso.
Tivesse
esse caso ocorrido na Europa, o Corinthians, com certeza, ficaria anos a fio
excluído de qualquer competição esportiva de caráter internacional. A punição
no Brasil se resumiu a um jogo com portões fechados e a devolução dos valores
dos ingressos vendidos antecipadamente. Vergonha.
Só
restou a dor de uma família atingida pela tragédia. Limbert Beltrán, um
professor de classe média, pai de Kevin tem motivos de sobra para não acreditar
mais em Justiça. Ele até que tentou levar o caso adiante, mas estava sozinho,
ninguém o ajudou a continuar um processo fora do seu país. Limbert guarda a
mágoa em dose dupla: ter perdido o filho e não ter conseguido justiça.
Logo
após a tragédia ocorreram os discursos de sempre, que logo ali são esquecidos.
Jogo para a platéia. O presidente da Confederação Brasileira de Futebol (CBF),
José Maria Marin, prometeu ajuda, colaboração à família. E o que fez depois?
Nada, absolutamente nada.
E
o presidente do Corinthians, então? Disse da boca para fora que a vida do
menino morto não tinha preço, que queria ajudar com uma quantia em dinheiro.
Chegou até a oferecer 200 mil dólares. Na hora de pagar havia baixado para 50
mil dólares.
Passaram-se
365 dias depois da tragédia na Bolívia, e a família de Kevin nunca viu a cor do
dinheiro prometido pela Federação Boliviana de Futebol (FBF), que viria de um
amistoso realizado com a Seleção Brasileira. O jogo foi realizado dia 6 de
abril de 2013, o Brasil venceu por 4 X 0 e a renda somou R$ 1,087 milhão.
A
FBF ficou com o total da arrecadação e prometeu doar cerca de R$ 42 mil (3,9%)
aos pais de Kevin na semana seguinte ao jogo. O montante, porém, nunca foi
repassado.
O
próprio time do San José, da Bolívia, também não fez nada. A Conmebol usou a
morte de Kevin para se promover, fazendo vista grossa para os torcedores, para
as brigas e toda a violência.
Apenas
duas instituições e uma pessoa ajudaram a família de Kevin, e sem fazer
qualquer espetáculo ou divulgação disso. As instituições foram a do Club Bolívar,
de La Paz, do Aurora, de Cochabamba, e uma pessoa do Brasil, de nome Fabiano,
que, via Internet, doou 500 dólares. Só esses foram solidários.
Um
ano se passou da morte de Kevin e apenas sobrou a impunidade. O sacrifício do
jovem parece que de nada adiantou. Os estádios de futebol continuam dominados
por multidões de delinquentes, patrocinados e protegidos por quem deveria
reprimi-los, os dirigentes dos grandes clubes.
A
Polícia também, teve sua parcela de culpa na tragédia, pois não revistou nenhum
dos torcedores brasileiros que se acotovelavam em um dos portões do estádio.
Esse foi o erro. Se tivessem feitos as revistas, ninguém teria entrado no
estádio com sinalizadores.
Casa
arrombada, tranca de ferro. Depois da morte de Kevin, uma nova lei foi implantada
na Bolívia, proibindo o uso de artigos pirotécnicos em estádios de futebol. Mas
a Conmebol nada fez no sentido de garantir mais segurança nos jogos que
promove.
A
falta de sensibilidade é tão grande, que o ano passado o presidente
corinthiano, Mário Gobbi, ofereceu simbolicamente aos 12 torcedores presos em
Oruro, o título de campeão paulista.
E
pior. O que o presidente corinthiano falou, e saiu na imprensa, "que a
grande lição dessa história toda, o mais doloroso foi 12 torcedores ficarem
injustamente presos na Bolívia, e não a morte do garoto". Mário Gobbi
desprezou a vida de um jovem de 14 anos que tinha um bom futuro pela frente e
que respeitava todas as regras da sociedade.
Depois
disso, nada mais restou ao pai do menino morto, do que questionar a dignidade
de Gobbi, que desrespeitou à sua família. Fica guardada a indignação de Limbert
Beltrán, que disse em alto e bom som:
“Quando
penso nesse indivíduo, eu penso em alguém que está mergulhado em dinheiro, mas
tem muita carência de valores e sentimentos. Acho que ele não tem filhos. Vou
esperar que ele um dia tenha consciência moral e mude sua opinião. Que ele
reflita sobre o assunto com o tempo. E que a família dele nunca sofra o que os
seus “queridos” torcedores provocaram à nossa família”.
Aliás,
cinco dos “queridos” torcedores protegidos por Mário Gobbi, depois de soltos na
Bolívia e de volta ao Brasil, já foram protagonistas de cenas nada louváveis:
três deles, Cleuter Barreto Barros, Leandro Silva de Oliveira e Fábio Neves
Domingos, brigaram com torcedores do Vasco e com a Polícia Militar, em agosto
do ano passado, em jogo do “Brasileirão”, realizado no Estádio Nacional de
Brasília..
Outro
dos “mártires” de Oruro, Tiago Aurélio dos Santos Ferreira foi preso hoje,
depois de ter-se envolvido na invasão ao CT Joaquim Grava, no dia 2 de
fevereiro, que teve agressões, inclusive ao atacante Guerrero, quebra-quebra,
vômitos e cervejada.
Torcedores corinthianos estiveram presos por seis meses em Oruro. Na volta ao Brasil, alguns deles se envolveram em brigas e desordens. (Foto: Divulgação)