quinta-feira, 23 de abril de 2015

Um negro no futebol japonês

Foi um brasileiro o primeiro negro a jogar futebol no Japão, onde o esporte durante anos foi primazia dos brancos. Dorival Carlos Esteves, de apelido “Kalé”, correu pelos gramados nipônicos de 1968 a 1973. Por lá era conhecido por “Carlos Sam”, que quer dizer “senhor”, em japonês.

Ele deu inicio a carreira nas categorias de base da Ferroviária, de Botucatu (SP). Chegou ao time titular quando o lateral Zé Maria, que era seu amigo e um grande jogador, foi negociado com a Portuguesa de Desportos. Na época a Ferroviária estava na 1ª Divisão do Campeonato Paulista, a atual “Série B”.

Da Ferroviária foi para o Juventus, da capital, onde fez parte do elenco que tinha grandes jogadores, como Milton Buzzeto, Pando, Cabeção, Mão de Onça, Ferreirinha, Virgílio, Nenê, Tanezi, Jair Francisco, Chiquinho, Cosme, Toninho Minhoca, Valdir e Bira, que foi para o México.

Na Rua Javari “Kalé” ganhou experiência, primeiro no time de aspirantes e depois nos profissionais onde jogou algumas partidas, inclusive uma contra o São Paulo, que tinha na época o atacante Paraná.

Edu, do Santos F.C., na opinião de “Kalé” era um ponteiro difícil de marcar, pois costumava se mexer para os dois lados. Não chegou a enfrenta-lo. Já o Nei, do Palmeiras, considerava um jogador diferenciado. O mesmo achava de Kaneco, do Santos, um atacante bastante habilidoso.

Destacou, ainda, “Piau” e Edu Bala, à época na Portuguesa. E foi exatamente num jogo contra a “Lusa”, na Rua Javari, que um olheiro do futebol japonês, o senhor Vicente Hayashida, que era brasileiro, mas trabalhava para o time japonês, esteve presente para lhe observar.

“Kalé” soube da presença do olheiro através do dirigente juventino, Moacir Figueiredo, já falecido. Isso foi em 1968. O jogador tinha apenas 19 anos, havia acabado de fazer o “Tiro de Guerra”, no Exército.

Por pouco “Kalé” não perdeu a chance de ir para o Japão, pois nesse jogo teve uma distensão muscular. Mas mesmo assim foi aprovado, indo para o Yanmar Diesel, de Osaka, Japão, hoje Cerezo Osaka.

Toda a documentação foi feita e “Kalé” fez sua primeira viagem de avião. Foram 28 horas de voo. Conta que ficou meio receoso, mas correu tudo bem. Foi um voo da Varig.

Em terras nipônicas teve destaque como lateral-direito, tendo ajudado o time a conquistar por três vezes a "Chuteira de Ouro", em 1970, 1971 e 1972.

O contrato, na opinião do jogador foi bem feito. Tinha boa moradia, alimentação (café, almoço e jantar) e se constituiu no primeiro jogador de futebol negro e estrangeiro a atuar no Japão.

Havia um negro jogando beisebol, e eles queriam um negro para o futebol e “Kalé” teve a sorte de ser o primeiro deles, se bem que havia o Nelson Yoshimura, mas esse era nissei.

No começo Nelson Yoshimura o ajudou muito. “Kalé” disse que quando se vai morar em outro país, tem que assistir muita televisão, ouvir bastante. Em um ano já conseguia conversar, sair sozinho e se virar sem problema. Até hoje, consegue falar bem o japonês, não esqueceu.

Sobre a alimentação, “Kalé” fala que gostou, tanto que até hoje come sushi e sashimi, que gosta bastante. No Japão se come muita verdura e legumes, muito saudável. Sentiu sua saúde melhorar, principalmente porque por lá usam pouco óleo na comida.

No arroz, eles só usam água para cozinhar. Às vezes comia carne, mas pouco, era muito caro. Sentia falta de comida brasileira, embora as vezes recebesse feijoada em lata, vinda do Brasil. Dava para matar a saudade...

Chegou a jogar no mesmo time que Kunishige Kamamoto, considerado o “Pelé” japonês. “Kalé” garante que ele era um atacante muito bom. Tinha a força do “César Maluco”, mas era mais habilidoso, como o Leivinha. Naquela época ele jogaria tranquilamente em qualquer clube brasileiro.

“Kalé” gostaria de ter enfrentando “Pelé”, mas não o fez. Conta que uma vez estava em uma preliminar, na Vila Belmiro, jogando pelo Juventus, contra o Santos, e viu os titulares chegando.

Estava se encaminhando para cobrar um escanteio e viu o “Pelé”, que estava com uma camisa buclê cor-de-rosa. E o ficou admirando, era o “Rei do Futebol”. Uma vez ele foi ao Japão, fazer alguns amistosos pelo Santos.

“Kalé” foi ousado, conhecia algumas pessoas no hotel em que o Santos estava hospedado e subiu até o quarto do craque. Ele abriu a porta cordialmente, e “Kalé” se apresentou como jogador de futebol e pediu um autógrafo.

“Pelé” estava sozinho no quarto e deu o autógrafo. Depois “Kalé” foi assistir o jogo do Santos no ônibus do próprio time, com os jogadores.

Na Copa de 2002, “Kalé” conta que não assistiu o jogo final contra a Itália, porque estava na concentração com o seu time, que tinha jogo no dia seguinte, e o treinador não liberou para que fossem ao estádio. Mas ainda assim o penta do Brasil acabou valorizando “Kalé”.

Falando sobre o futebol atual, acredita que menos jogadores se destacam, caso de Neymar. Lembra que foi uma pena aquilo que aconteceu em 1982, quando o Brasil tinha um time maravilhoso com Zico, Sócrates, Falcão, Cerezo, Júnior, etc.

Destacou também Beckenbauer e Gerd Muller, entre outros. Mas quem lhe chamou mais atenção, e também dos japoneses, foi o Zico. Eles até observaram o Maradona, mas preferiram levar o Zico para jogar lá.

Na opinião de “Kalé”, no futebol japonês o que vem em primeiro lugar não é o jogador, sim o valor do homem. O Zico é um grande homem, uma grande pessoa. Todos ficaram maravilhados com o que ele fez no Japão.

Considera Neymar o jogador que mais pode se aproximar de “Pelé”, se o deixarem jogar. Sobre o técnico Dunga, “Kalé” ressalta que essa é uma situação delicada, a grosso modo, embora respeite o Dunga, pelo jogador que foi, técnico também.

Mas na sua opinião, a CBF teria opções boas, dentro do território nacional, como por exemplo Tite e Muricy, um para ser técnico e outro para supervisor. Mas sem preferência para quem seria o técnico e quem seria o supervisor.

“Kalé” conta que melhorou de vida no Japão, fez aquilo que era possível e também ganhou muitos amigos. Não mostra nenhum arrependimento de ter ido jogar lá.

O jogador faz questão de dizer que foi muito bem tratado pelos torcedores japoneses, não tendo sofrido nenhum tipo de preconceito. Bem ao contrário do Brasil, onde passou por "algumas situações constrangedoras”, que ele enfrentou sem problemas.

Eles tinham curiosidade em ver um negro, principalmente no esporte. Chegavam perto de ”Kalé” e o achavam bonito. O Nelson Yoshimura servia de tradutor e lhe contava o que as pessoas diziam.

Até as torcidas adversárias sempre o respeitaram. Apenas pediam para que o marcassem, porque achavam que era um bom jogador. “Kalé” chegou a ganhar a "Chuteira de Ouro" por três anos consecutivos, como melhor lateral-direito do futebol japonês. (1970/71/72). Os jornalistas esportivos é que participavam da votação.

Certa vez os radialistas Fiori Giglioti e Alexandre Santos, da Rádio Bandeirantes, o entrevistaram sobre a sua experiência no futebol japonês e os prêmios que ganhou. “Kale” acha que essa entrevista foi muito bacana.

Falando sobre a cultura japonesa, disse que é muito diferente da nossa. São dois dialetos e três línguas. A maneira como o povo trata os estrangeiros é maravilhosa.

Depois de encerrar sua carreira, “Kalé” ainda permaneceu no Japão, contratado por uma empresa para ensinar garotos a jogarem futebol. Ele estava em Kobe, quando a cidade foi abalada por um forte terremoto em 17 de janeiro de 1995.

“Kalé” lembra que tudo começou às 5h45, de maneira lenta, mas foi aumentando. Ele teve que se proteger embaixo da mesa do apartamento. Tudo voava. O tremor foi de 7,2 graus, na Escala Richter. Perdeu amigos na catástrofe.

Depois que saiu as ruas viu os japoneses em pânico, crateras se abrindo, postes caindo, explosões de gás, tudo acontecendo ao mesmo tempo. Parecia um filme.

Quando voltou ao apartamento para pegar seus documentos, os degraus balançavam e estava tudo destruído. Desceu com uma mala, com os objetos mais importantes e foi a pé até a cidade de Omeda.

Não havia telefone funcionando, um caos. Depois conseguiu falar com os familiares, que estavam muito preocupados. Foi restituído de tudo o que perdeu, até por um trem que atrasou, logo após o terremoto.

Depois, quando já estava de volta ao Brasil, o governo japonês depositou cerca de 10 mil dólares na sua conta corrente. Eles tem uma grande estrutura para atender as pessoas nesses casos.

Atualmente, com 68 anos de idade, “Kalé” mora em Americana, interior de São Paulo, e trabalha em uma empresa de transportes. (Pesquisa: Nilo Dias)


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