Memória
do futebol feminino
A
cidade de Pelotas (RS) é detentora de mais um fato histórico. Foi lá que no
distante ano de 1950 o futebol feminino deu seus primeiros passos no Rio Grande
do Sul. Ele já era praticado em outros centros, como São Paulo e Rio de
Janeiro, principalmente.
Sabe-se
que em São Paulo o futebol feminino foi praticado pela primeira vez em 1913, num
evento beneficente, em Indianópolis. Depois, em 1921, se defrontaram times de
“senhoritas de Tremembé e da Cantareira”, bairros da zona norte de São Paulo.
No
Rio de Janeiro ocorreram alguns torneios em 1940, envolvendo predominantemente
mulheres do subúrbio carioca. Nesses torneios formaram-se times como o “Cassino
Realengo” e o “Eva Futebol Clube”.
A
experiência pelotense deu-se por iniciativa de dois clubes amadores
tradicionais da cidade, na época, o Corinthians Futebol Clube, do Bairro Santa
Terezinha e o Vila Hilda Futebol Clube, do Bairro Fragata.
Ambas
as agremiações também tinham times masculinos e possuíam razoáveis estruturas
com sedes sociais e campos próprios. As duas equipes foram fundadas
praticamente juntas: o Corinthians em 4 de abril de 1950, e o Vila Hilda, dois
dias depois.
A
maioria das jogadoras era jovens, entre 13 e 18 anos, que pertenciam à classe
média baixa e residiam nos próprios bairros onde os clubes estavam situados. Em
1950, Pelotas tinha 127.641 habitantes, sendo 81.863 na zona urbana e 45.778 na
zona rural.
Naqueles
tempos a cidade já tinha uma forte tradição esportiva. A imprensa especializada
da época relata a participação de mulheres praticantes de voleibol, basquetebol
e, principalmente, natação, considerado um esporte indicado para mulheres, que
ocorria dentro de determinados clubes sociais privados. A maioria delas pertencente
à classe média. Algumas até competiam e chegaram a alcançar projeção estadual e
nacional.
Foi
dentro desse cenário, que Pelotas se tornou palco da pioneira experiência de
organização de duas equipes de futebol feminino. Antes disso tem-se
conhecimento de que a prática do futebol feminino na cidade se resumia a uma ou
outra exibição esporádica, nas quais predominava mais o sentido exótico do que
o esportivo.
O
jornal “Opinião Pública”, que era editado na cidade, em sua edição de 14 de
janeiro de 1930, publicou que no dia anterior, após a exibição de uma sessão do
“Circo Queirolo”, duas equipes de futebol feminino deram entrada no picadeiro e
improvisaram um “Bra-Pel” (clássico da cidade envolvendo G.E. Brasil X E.C.
Pelotas), que terminou com a vitória do G.E. Brasil por 1 X 0.
A
ex-jogadora de futebol, Norma Brechane, concedeu uma interessante entrevista ao
jornal “Diário Popular”, em sua casa, no bairro Laranjal, em Pelotas, dia 26
outubro de 2004. Ela participou dos jogos de 1950 e atuou tanto pelo time do
Vila Hilda como pelo Corinthians.
Ela
contou que a iniciativa do futebol feminino teve o apoio de jogadores e
diretores dos clubes. Tudo começou quando as meninas assistiam os treinos do
time masculino e chutavam a bola para eles, toda a vez que caia fora do gramado.
Então,
os rapazes comentavam nessas ocasiões, “porque não fazer um time feminino?”. Então
as gurias gritavam: “Ah! Eu quero jogar’.
E
a idéia prosperou. Não demorou para que se formassem os grupos e tivessem
inicio os treinamentos dos dois times, que começaram praticamente juntos. Os
técnicos eram jogadores ou ex-jogadores dos quadros masculinos.
Segundo
dona Norma, eram realizados dois treinos semanais: um composto por exercícios
físicos, noções táticas e execução de fundamentos, e outro em que jogavam as
reservas contra as titulares.
Mesmo
sendo dono de um campo, o Vila Hilda preferia treinar no Estádio do G.A. Farroupilha
e no campo do quartel, localizado no bairro Fragata. Já o Corinthians F. C. treinava
em seu campo na Vila Teresinha.
O
jornal “Diário Popular” deu inicio a uma série de reportagens sobre o futebol
feminino na cidade, destacando “Pelotas desportiva conhecerá em breve, Gelsi
centro atacante, atleta de grande qualidade, que controla a bola com precisão.
No ensaio de domingo, que terminou com vitória das titulares por 5 X 2, ela
marcou três vezes”.
O
professor Pedro A. C. Teixeira, que na época tinha apenas 5 anos de idade,
disse que assistiu jogos femininos no campo do Vila Hilda. A casa deles dava acesso
a chácara do senhor Ricardo Stein, e por lá passavam suas belíssimas filhas
Norma e Milani, que eram meninas moças na época, mas já jogavam futebol.
Para
o professor Pedro, isso já era um enorme avanço, pois mulheres e meninas eram
tratadas como seres fracos, meigos e incompetentes, tendo sido preciso muita
luta para que conseguissem ter o seu lugar ao sol, nesta sociedade machista e
ainda muito atrasada.
Hoje
elas ocupam todos os cargos tipicamente masculinos, como militares, policiais e
até Presidente da República.
O
professor Pedro fez interessante pergunta: “Onde estavam as meninas negras? Não
existiam? Não jogavam? Ou era por outro motivo?”
Hoje
elas reinam quase que absolutas nos campos, porém nessa época existia ainda
muito racismo, como hoje, a única diferença é que agora é enrustido.
Pesquisando
sobre o tema, o professor Pedro em 9 de março de 2012, publicou em seu blog
"Eu sabia, e tu sabias?", a matéria “Mulheres de chuteira”, a
respeito do futebol feminino em Pelotas.
Depois,
em 28 de dezembro de 2014 publicou “Incêndio 1”, onde mostra uma foto sua com a
ex-atleta Norma, 62 anos após o histórico jogo realizado em 1950. Ele foi
visitá-la em sua residência em Pelotas.
Norma,
conforme já dito anteriormente, era filha do senhor Ricardo Stein, e dona
Susana Klomp Stein. Ela casou com o militar Milton Brechane, tomando o nome de
Norma Stein Brechane, sendo mãe de três filhos, sendo um deles, renomado
médico. (Norma é a mesma que concedeu entrevista ao jornal “Diário Popular”)
Milton
Brechane havia servido ao exército juntamente quando o pai do professor Pedro
era primeiro sargento. O mesmo veio a falecer há muitos anos. Hoje, Norma
encontra-se bem. Já a sua irmã, Milani, que era muito bonita, faleceu ainda uma
mulher jovem deixando dois ou três filhos.
O
primeiro jogo de futebol feminino entre as equipes do Corinthians X Vila Hilda
foi realizado na tarde de 7 de junho de 1950, no Estádio Bento Freitas, do G.E.
Brasil e caracterizou-se como uma “festa social-esportiva, com a presença de
uma banda musical”.
O
resultado final foi um empate de 1 X 1. Joanete, contra fez o gol do
Corinthians e Carmem empatou para o Vila Hilda. O evento também foi uma homenagem
ao prefeito doutor Joaquim Duval. A partida preliminar reuniu as equipes do
G.E. Brasil X S.C. Rio Grande.
Os
ingressos tiveram estes valores: cadeiras – Cr$25,00; pavilhão – Cr$15,00;
geral – Cr$8,00; menores, colegiais, fardados e senhoras – Cr$5,00.
A
“Revista dos Esportes” (1948 a 1958), que era editada em Pelotas naquela época,
destacou em duas páginas o ineditismo do futebol feminino na cidade. Contou que
o encontro teve tamanha repercussão que atraiu, inclusive, dois elementos da
imprensa do Chile que, de volta do Rio de Janeiro, onde cobriram a “Copa do
Mundo”, foram atraídos pelo interessante encontro feminino.
No
dia 26 de agosto de 1950 aconteceu o segundo jogo entre as duas equipes, dessa
feita no Clube Atlético Bancário. O Vila Hilda ganhou por 2 X 0, com gols marcados
por Nair e Inês (contra). A preliminar foi entre C. A. Bancário X Cometa
F. C. A renda somou Cr$3.940,00.
Além
dos jogos realizados em Pelotas, as duas equipes fizeram excursões para outras
cidades como Rio Grande, Porto Alegre e Novo Hamburgo. Na entrevista dada ao
jornal “Diário Popular”, dona Norma Brechane disse que participou de duas
dessas excursões.
Em
Rio Grande foi um jogo de exibição, reunindo Vila Hilda X Corinthians. Em Porto
Alegre jogaram também contra as esquadras do Amazonas e do Tiradentes. Sabe-se que a
ida à capital do Estado, fez despertar por lá um grande entusiasmo pelo futebol
feminino.
Vila
Hilda e Corinthians se defrontaram em cinco oportunidades naquele ano de 1950, sendo
duas em Pelotas, uma em Rio Grande, uma em Porto Alegre e uma em Novo Hamburgo.
Os resultados desses confrontos foram um empate em 1 X 1, outro em 0 X 0, duas
vitórias do Corinthians – uma por 1 X 0 e outra por 2 X 0 – e uma vitória do
Vila Hilda por 2 X 0.
O
interesse que o futebol feminino alcançou naquele ano foi tão grande, que a
diretoria do Corinthians recebeu correspondências das rádios Globo, Nacional e
Tamoio, do Rio de Janeiro, Farroupilha e Gaúcha de Porto Alegre, Diário de
Notícias, de Porto Alegre e até mesmo da “Revista Del Esporte”, de Montevidéu, que
solicitavam pormenores e fotografias do conjunto feminino.
O
esporte estava em plena ascensão. Além de aumentar o número de equipes, Vila
Hilda, Corinthians, Amazonas, Renner e Tiradentes, ele havia conquistado a
simpatia do público e ocupado um espaço significativo na imprensa de Rio
Grande, de Pelotas e de Porto Alegre.
Mas
tudo que é bom dura pouco. Foi justamente nesse momento de ascensão do futebol
feminino que o CND entrou em cena cobrando que fosse cumprido o Decreto-Lei
3.1992 que proibia a prática desse esporte por mulheres. Essa intervenção
deu-se justamente quando se começou a cogitar a possibilidade dos times locais
excursionarem para outros Estados ou mesmo para fora do país; e quando as
jogadoras começavam a reivindicar o uso de chuteiras.
O
decreto estipulava que as mulheres eram proibidas de participarem das seguintes
modalidades esportivas: futebol, futebol de salão, futebol de praia, pólo
aquático, pólo, rúgbi, halterofilismo e beisebol. Essa
deliberação somente foi revogada em 1979.
O
“Diário Popular” só voltou a fazer referência ao futebol feminino, em sua
edição de 4 de julho de 1951, na matéria intitulada “Jogaram dia 12 as
porto-alegrenses”, em que destaca “embora o CND tivesse proibido os jogos entre
as equipes femininas de futebol, a imprensa da capital do Estado está
anunciando que os dois quadros – Renner e Tiradentes – jogaram dia 12”.
Outra
jogadora que ganhou grande destaque na época foi Madalena
Palombo,
que defendia a equipe do Corinthians e era considerada a melhor atleta feminina
da cidade. João Manoel Pruss, que tempos depois casaria com ela,
assistiu o jogo na “Montanha”, em Porto Alegre.
Ele
descobriu o hotel onde a delegação pelotense estava hospedado e foi até lá
conhecer Madalena, tendo inicio ai o namoro que depois virou casamento que
durou 48 anos, até o falecimento da ex-jogadora em 2000. O casal teve três
filhos.
Em
1983, foi realizada a primeira preliminar feminina de um jogo masculino, fato
inédito no país. Antes de Grêmio Foot-Ball Porto Alegrense X São Paulo pela
Taça de Ouro, jogaram os times femininos do Esportivo de Bento Gonçalves X S.C.
Rio Grande.
Foi
o primeiro jogo de futebol feminino autorizado pela Federação Gaúcha de Futebol
(FGF). O jogo teve duração de 70 minutos com 35 minutos para cada lado e 15
minutos de intervalo. Para jogos amistosos poderiam ser feitas 5 substituições
e em jogos oficiais 3 substituições.
As
jogadoras eram obrigadas a usar protetores de seios e as chuteiras não poderiam
ter travas pontiagudas e a bola que fosse dominada no peito seria considerada
falta, equivalente à bola na mão.
Em
1983, a Federação Gaúcha de Futebol criou o Campeonato Gaúcho de Futebol
Feminino com a participação de cinco equipes: Internacional, de Porto Alegre,
que era o seguimento do Pepsi-Bola; Grêmio FBPA, também de Porto Alegre; E.C. Internacional,
de Santa Maria; Cerâmica de Gravataí e Esportivo, de Bento Gonçalves. (Pesquisa:
Nilo Dias)
O time feminino do Corinthians Futebol Clube, de Pelotas, que participou do histórico jogo de 1950, no Estádio da Montanha, em Porto Alegre, frente o Vila Hilda Futebol Clube, também de Pelotas. (Foto: Jornal "Diário Popular", de Pelotas)
Parabéns !
ResponderExcluirMuito interessante o texto sobre o futebol feminino, como filho de Madalena Palombo Pruss e em nome de nossa família agradecemos a postagem desejando muito sucesso ao repórter Nilo Dias.
Paulo Roberto Palombo Pruss
Olá Nilo Dias.
ResponderExcluirAcabo de chegar de Pelotas, onde havia ido, neste último sábado, para visitar minha velha amiga Norma Stein Brechane, citada nesta matéria, mas infelizmente não a pude ver, pois na quarta-feira passada a mesma nos deixou. Para mim foi a perda de uma amiga de quase setenta anos. Foi-se a amiga, deixou enorme vazio em nossos corações, vazio que será preenchido lembrando de sua história, tanto como amiga, mãe de três filhos e pioneira, mesmo que um pioneirismo efêmero, na arte do futebol. Que ela e todas as que com ela fizeram essa história permaneçam vivas nos livros, mostrando as novas gerações que nunca causa alguma é perdida. Temos que reverenciar essa mulheres de garra e coragem que quebram tabus, enfrentam as tiranias machistas e dão tanta graça as nossas vidas.E se hoje temos até campeonatos mundiais de futebol feminino, graças a essas adoráveis pioneiras.
Saudades eternas de Norma.
Prof. Pedro Aurélio de Castro Teixeira.