quinta-feira, 6 de julho de 2017

O narrador da gaitinha de boca

Ary Evangelista Barroso era mineiro de Ubá, nascido no dia 7 de setembro de 1903. Seus pais morreram em 1911 e ele passou a ser criado pela avó, Gabriela Augusta de Rezende, e pela tia professora de piano, Rita Margarida de Rezende. Em 1920, com a idade de 17 anos, mudou-se para o Rio de Janeiro.

Advogado por formação, Ary Barroso possuía muitos talentos e praticava todos eles, era radialista, escritor, humorista, repórter, produtor, pianista, mestre de cerimônias, apresentador de TV, entrevistador, narrador e comentarista de futebol e político.

As pessoas mais novas talvez nunca tenham ouvido falar nele, o homem que compôs a música “Aquarela do Brasil”, considerada quase um segundo Hino Nacional. A sua carreira profissional foi brilhante, e seu programa de calouros no auditório da Rádio Tupi, do Rio de Janeiro arrastava grades legiões de ouvintes país afora.

Ficou famosa a cena proporcionada por um calouro, que ao ser perguntado por Ary, qual a música que cantaria, respondeu que um sambinha, “Aquarela do Brasil”. E Ary, indignado expulsou o calouro dizendo que “você pode cantar o sambinha que bem entender, mas o meu samba você não canta mais”.

Além de ser um compositor emérito, autor de outros sucessos como “Tabuleiro da baiana”, “No rancho fundo”, “Na baixa do sapateiro” e muitas outras, também foi um destacado narrador esportivo, embora nada imparcial, em razão da sua paixão pelo Flamengo.

Seu estilo inovador de narrar se tornou famoso. Era o torcedor contando jogos de sua equipe. E a ideia de usar uma gaitinha de boca, a cada gol narrado, se tornou sucesso inquestionável.

Na juventude tentou ser jogador de futebol, lá em Ubá, Minas Gerais e depois no Rio de Janeiro. Mas não deu certo. Sua vocação era outra. Por isso acabou entrando para o rádio, como locutor esportivo, primeiro, e depois compositor musical.

Começou a carreira de narrador num Fla–Flu, jogo de significado especial para ele: poucos sabem, mas Ary fora torcedor do Fluminense até o dia em que foi barrado na porta do clube, e ficou chateado com a diretoria.

Ary chegou ao Flamengo em 1926, levado pelas mãos de José de Almeida Neto, o zagueiro “Telefone”. E desde então integrou-se à vida social, política e desportiva do clube. A partir daí foram 33 anos de dedicação incondicional ao Flamengo.

A primeira narração de Ary, com a gaitinha famosa, que substituía o grito de gol, aconteceu na transmissão do jogo entre Vasco e São Cristóvão, em que os vascaínos venceram por 7 X 1. Foram, portanto, oito apitos da gaita.

O sucesso causou frenesi e aumentou com a escandalosa parcialidade do locutor: gols do Flamengo eram comemorados com sopros muito mais longos do que os das outras equipes. Já os gols sofridos pelo seu time rubro negro, eram assinalados com dois apitos curtos, se muito.

E tinha uma razão de ser. Naquele tempo não existiam cabines de rádio nos estádios. A narração era feita no meio da torcida. E quando do gol quase não se ouvia a voz do narrador. E o som da gaita refletia bem o momento maior de um jogo de futebol.

O estilo inovador de Ary teve reflexos positivos na venda de anúncios publicitários. Graças a isso ele conheceu o publicitário Antônio D’Ávila, também conhecido por “Zuzu”, um jovem pernambucano, encarregado de vender os anúncios para suas transmissões.

E passou a vender como água. Os preços eram relativamente “salgados”, custando entre 5 e 10 mil réis por jogo, mas ainda assim ninguém reclamava e pagava com um sorriso no rosto. A propaganda era distribuída em três ou cinco textos, em média, com trinta palavras.

A cada transmissão de futebol uma infinidade de anunciantes, que iam desde fabricantes de calçados e móveis, até para o óleo perfumado “Pindorama”, que dizia “de cabeça em cabeça, corre a fama do óleo perfumado Pindorama”.

Diversas aventuras marcaram a vida de Ary como locutor esportivo. Violentamente criticada pelo locutor, a diretoria do Vasco da Gama, certa vez, proibiu sua entrada no Estádio de São Januário, onde se travaria importante jogo entre Vasco e Fluminense. Como não se dava por vencido facilmente, transmitiu o jogo de um telhado das vizinhanças, auxiliado por binóculos.

Episório idêntico aconteceu na cidade de Pelotas (RS), quando o presidente do Grêmio Atlético Farroupilha, probiu a entrada de integrantes da Rádio Pelotense, no estádio do clube. A solução foi a construção de uma torre de madeira no lado de fora do estádio.

Não demorou para que a poderoso Rádio Tupi, do empresário Assis Chateaubriand contratasse a dupla Ary e “Zuzu”, em 1937. E Ary ficou por 15 anos na emissora, enquanto seu parceiro, “Zulu”, ingressou na política e anos mis tarde chegou a ser assessor especial do presidente Jânio Quadros, criando o jingle histórico: “Varre, varre, vassourinha...”.

Chateaubriand pensava longe. A contratação de Ary Barroso visava fortalecer a sua emissora, para poder enfrentar a nova concorrência surgida em 1936, quando entrou no ar a Rádio Nacional, do Rio de Janeiro.

Na Tupi continuou a narrar futebol da mesma forma apaixonada de sempre. O torcedor adorava ouvir suas narrações, em especial os do Flamengo. Um lance por ele narrado, que se tornou famoso: “Ih, lá vem os inimigos. Eu não quero nem olhar". 

Quando das disputas do Campeonato Sul-Americano de 1937, com os nervos à flor da pele, Ary Barroso chegou a desmaiar durante a transmissão.

A paixão pelo Flamengo fez com que não aceitasse um convite para trabalhar na Walt Disney, nos Estados Unidos, porque lá “não existia um Flamengo”.  

E também era torcedor da Seleção Brasileira. Contam que em 1940, quando do Campeonato Sul-Americano, a Rádio Mayrink Veiga , do Rio de Janeiro detinha exclusividade para transmitir a competição. A época era de uma concorrência enorme entre as emissoras de rádio, especialmente nas transmissões de futebol.

E o que fez Ary Barroso, para conseguir transmitir o certame continental? Embarcou num avião e foi parar na Argentina, de onde, confortavelmente instalado no apartamento de amigos, sintonizou uma rádio local que retransmitia o jogo narrado por Oduvaldo Cozzi, dublou o colega e fez chegar sua narração à Rádio Tupi.


Tem ainda mais uma história bem engraçada, envolvendo uma aposta feita pelo flameguista Ary e outro compositor, o fluminense Haroldo Barbosa. Como conta o escritor Ruy Castro: 

"Em 1953 ou 1954, os dois apostaram o bigode num Fla-Flu. Quem perdesse teria o bigode raspado pelo outro, com imprensa e tudo. Haroldo ganhou, e a história, anos depois, acabou num samba: "Flamengo já parou de perder por aí /Eu vi o Haroldo Barbosa raspar o bigode do Ary./ Às vezes, com dez homens ele vence/ Mas, também com onze, perdeu para o Fluminense".

Pelo Flamengo ele fazia qualquer coisa. Em 1943 foi um dos responsáveis pela contratação do jogador paraguaio, Modesto Briac. Para concretizar a negociação, ele conseguiu emprestado o avião particular do chefe, Chateobriand, para buscar o jogador.

Ary tinha também companheiros inseparáveis nas transmissões esportivas. Isaac Zinkenmann, repórter de sua equipe na Tupi, utilizava um aparelho semelhante a um ferro de passar roupa, com gancho de telefone acoplado.

Ari, com seu “flamenguismo” declarado, chamou a participação do jovem repórter e disse: “Alô Isaac!”. O repórter, todo enrolado com a nova engenhoca, respondeu: “Quem fala?”.  Ari ficou furioso com a resposta e devolveu:

“Como, quem fala. Quem poderia ser Isaac?”. O locutor não perdoou o vacilo do repórter e emendou: “É o Ary, aliás, deixe esse microfone de lado, que você não tem jeito para a coisa. Está despedido”.

Mais uma das eternas brincadeiras de Ary, que não mandou Isaac embora, até porque era um grande amigo do repórter. Tudo fazia parte do “show”.

A última narração de futebol feita por Ary Barroso foi durante a Copa do Mundo de 1950, realizada no Brasil. A tragédia de nossa equipe foi tão decepcionante, que Ary Barroso e seu amigo e companheiro de transmissão, Antônio Maria, decidiram abandonar o rádio esportivo definitivamente.

O nosso herói não limitou suas transmissões esportivas apenas ao futebol. Muitas vezes também narrou corridas de cavalos e de automóveis. E paralelamente escrevia crônicas que eram publicadas no “O Jornal”. E até pensou em fazer um livro, que teria o título de "O Livro Negro do Futebol Brasileiro". Não existem registros que confirmem a publicação.

Ary Barroso morreu no dia 9 de fevereiro de 1964, em um domingo de carnaval, após lutar três anos contra a cirrose.  Quatro anos antes fora nomeado vice-presidente do departamento cultural e recreativo do Flamengo.


Ary Barroso trasmitiu um jogo do Vasco desde o telhado de uma casa vizinha ao Estádio São Januário. (Foto: Blog Literatura na Arquibncada)

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