Eu conheci algumas pessoas que dedicaram boa parte de suas vidas a juntar em suas casas, coisas que os leigos achavam ser lixo, quando na verdade, com o passar dos anos se tornaram verdadeiros tesouros. Eu lembro dos amigos que já se foram, Romeu Machado dos Santos, o popular Machadinho, em Pelotas, e Alexandre Degani, em Rio Grande. Os dois guardaram anos a fio, jornais, revistas, fotografias, fitas de gravações e qualquer coisa que lembrasse uma de suas grandes paixões comuns, o futebol.
Com o Machadinho eu tive um contato maior, pois fomos colegas na Rádio Pelotense, a mais antiga emissora gaúcha e a terceira a ser fundada no Brasil. Talvez porque tudo na Pelotense cheirasse a história – eu lembro bem do velho prédio da rua Félix da Cunha – ele tivesse um carinho especial para com ela, onde foi plantão esportivo por muitos anos.
Parece até que estou a ouvir o Machadinho fazendo a sua chamada característica, para anunciar algum resultado de jogo: “Alô Martines...”. E o velho amigo e narrador de futebol, Luis Carlos Martines, com sua voz inconfundível respondia: “Fala Machado”. São tempos que não voltam mais, mas ficam carinhosamente guardados em minha memória. Eu estive na casa do Machadinho várias vezes. Eram pilhas de jornais e revistas espalhadas por toda a parte. Hoje, todo esse acervo está a disposição do público para pesquisas, pois foi adquirido pela Prefeitura Municipal.
Eu até tenho vontade de dar uma olhada nesse material, pois certamente vou encontrar algumas fitas daquelas de rolo, com jogos que narrei, tanto na Rádio Tupancy, quanto na Pelotense. E velhas crônicas que escrevi nos tempos de editor de esportes do jornal “Diário Popular”.
Já o Degani tive o prazer de conhecer pessoalmente quando fui trabalhar em Rio Grande, em 1975, no jornal “Agora” e na Sucursal da Companhia Jornalística Caldas Júnior, que editava os jornais “Correio do Povo”, “Folha da Manhã” e “Folha da Tarde”. Além de ser proprietária da Rádio Guaíba, a primeira emissora do Rio Grande do Sul a transmitir uma Copa do Mundo (1958, na Suécia). O Degani era o plantão esportivo da Rádio Minuano, que tinha como narrador e chefe da equipe esportiva o saudoso Américo Souto. Também escrevia uma coluna semanal no jornal “Agora”, com dados estatísticos dos três clubes profissionais da cidade.
O valioso acervo deixado pelo Degani, segundo um de seus netos, Alexandre, encontra-se guardado na casa de veraneio da família na praia do Cassino. Eu, que penso em escrever um livro sobre os 100 anos do F.B.C. Rio-Grandense, que ocorre em 11 de julho do ano que vem, bem que gostaria de ter acesso a pasta destinada ao “guri” centenário, em busca de fatos históricos importantes. Mas isso é assunto para depois.
Eu sempre gostei de vasculhar o passado, por isso acabei me tornando um pesquisador. É claro que não cheguei a empilhar em casa coleções de velhos jornais e revistas, até porque a minha esposa Teresinha dava bronca. O que não impediu que eu tenha um armário, parte de um guarda-roupa e algumas sacolas plásticas, estrategicamente guardadas, contendo algum material importante. E os tempos hoje são outros. O computador facilitou tudo com suas “prateleiras” virtuais.
E nessas andanças pelo mundo da pesquisa encontrei várias referências ao jornalista paulista, Delphim Ferreira da Rocha Netto, falecido em 2003, aos 90 anos de idade, que deixou o mais completo arquivo sobre futebol já organizado no país. Foi, sem dúvida, o maior de todos os pesquisadores do futebol. Para que se tenha uma idéia do tamanho das informações que colecionou, basta dizer que tudo começou no distante ano de 1919, quando com apenas 6 anos de idade (nasceu em 09/07/1913), guardou os primeiros documentos e fotografias do futebol brasileiro e internacional.
No arquivo construído em 84 anos têm de tudo, correspondências recebidas de várias partes do Brasil e do exterior, cartões de prata, troféus, medalhas, flâmulas, faixas, louças, camisas, diplomas e outros prêmios ganhos em sua carreira de ex-futebolista, desportista e dirigente cobrindo praticamente todo o século XX. O tamanho do arquivo é descomunal, tanto que por muitos anos ocupou uma área de 1,4 mil metros quadrados, em dois imóveis, no centro de Piracicaba(SP).
O jornal “Gazeta de Piracicaba”, cidade onde o jornalista morou desde 1916 (era natural de Itu-SP), publicou matéria que revela detalhes do acervo: são cerca de 50 mil fotografias, súmulas de jogos oficiais, uniformes, troféus, coleções de periódicos, recortes de jornais, revistas e livros, além de reportagens e publicações nacionais e internacionais. Há relatos sobre a chegada da primeira bola de futebol ao Brasil. Cada clube brasileiro e internacional possui sua própria pasta, o que permite o acesso às informações desejadas em poucos minutos. As fotos individuais de cada atleta estão classificadas por ordem alfabética juntamente com a ficha de seus dados.
A importância desse acervo, considerado uma verdadeira enciclopédia esportiva é inquestionável. Ele já serviu para restabelecer a verdade de fatos mal contados e até para levantar a vida profissional de atletas, que dele dependeram para obter o “Prêmio Belfort Duarte” ou o direito à aposentadoria.
Doado ainda em vida, o acervo do jornalista Delphim da Rocha Netto encontra-se no Centro Cultural do Instituto Educacional Piracicabano/UNIMEP, onde estão abrigados outros acervos. Ele recebeu várias propostas milionárias para venda do arquivo, mas recusou todas, dizendo: “Meu arquivo vale minha vida e não tem preço”.
A jornalista Ângela Rodrigues foi quem fez a última entrevista com Rocha Netto, antes de sua morte. O velho jornalista, apesar da idade avançada mostrava grande lucidez e fez um relato de toda a sua vida. Uma história que misturou paixão e dedicação. Ele mostrou a entrevistadora uma velha foto de 1906, onde seu pai, Francisco Nazaré da Rocha, aparecia numa partida de futebol. O pesquisador explicou que o seu fanatismo pelo esporte foi herança do pai, que ele perdeu quando tinha apenas 4 anos de idade, vítima de complicações decorrentes de um acidente de trabalho.
Depois de uma carreira de cerca de 30 anos no futebol amador, jogando como goleiro, Rocha Netto encerrou sua atuação no esporte em 1944, após machucar-se numa partida contra o Palmeiras da Cidade Alta, time que revelou De Sordi, lateral-direito da Seleção Brasileira na Copa de 1958. Rocha Netto jogava no Paulista Futebol Clube, de Piracicaba. Teve ferimentos na cabeça e na mão esquerda.
A sua outra grande paixão era o XV de Novembro, de Piracicaba, clube fundado em 1913 e do qual foi presidente de honra. Rocha Neto escreveu dois livros contando a história do clube. O dinheiro arrecadado com a venda dos livros foi doado para entidades assistenciais da cidade.
Rocha Netto era técnico em contabilidade e trabalhou como fiscal da Secretaria Estadual da Fazenda. A carreira jornalística começou em 1930. Naquela época não era exigido registro profissional para o trabalho. Nas horas livres escrevia para os jornais. Seus primeiros passos na imprensa foram como colaborador do “Jornal de Piracicaba”.
Passou por veículos importantes como a extinta “A Gazeta Esportiva”, que parou de circular em 19 de novembro de 2001. Uma despedida melancólica, registrada numa edição de 14 mil exemplares. Quase nada para o jornal que chegou a uma tiragem de 534 mil exemplares no final da Copa de 1970. Rocha Netto chegou a ser chefe de reportagem do jornal quando havia uma sucursal em Piracicaba. Estão guardadas no arquivo todas as publicações de “A Gazeta Esportiva”, do primeiro ao último exemplar.
Quando Rocha Netto morreu, o site de “A Gazeta Esportiva” publicou uma notícia de apenas cinco linhas. Foi como o jornalista Cláudio Glória, escreveu no jornal de esportes “Todo Dia”: “Triste. Pelo menos ele não viveu este desgosto com uma empresa que adorava e da qual fez parte durante algumas décadas, quando ainda existia a saudosa versão impressa do maior jornal de esportes que o Brasil já teve”. (Pesquisa: Nilo Dias)
Alexandre Degani foi a memória do futebol de Rio Grande (Foto: Página do Orkut: "Saudades do Degani")
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