A intolerância contra os negros no futebol brasileiro começou a diminuir a partir de 1923, quando o C.R. Vasco da Gama disputou e venceu o campeonato carioca, com um time formado por negros e brancos pobres. É claro que isso mexeu com os brios dos dirigentes dos clubes de brancos, e o Vasco sofreu séria perseguição por ter sido campeão.
Mas não adiantou nada. Todo mundo estava a frente de um fato consumado. Agora, se sabia que não se ganhava campeonato só com time de brancos. A mistura de brancos, mulatos e pretos respondera com eficiência dentro de campo, sendo campeã da cidade.
Não havia mais nada a discutir. A tão decantada vantagem de ser filho de boa família, estudante e branco, não queria dizer mais nada. A partir desse momento ele jovem teria de competir em igualdade de condições com o pé-rapado, o analfabeto, o mulato, o preto. Era uma revolução que se desencadeava no futebol brasileiro.
A entrada dos negros e dos populares em geral nos clubes até então freqüentados e comandados pela elite, não ocorreu sem que tivesse sido criada antes, uma fronteira demarcando o status entre associados e atletas. Os sócios mais prestigiados é que teriam a responsabilidade da gestão política e administrativa dos clubes.
A aceitação dos negros no futebol brasileiro teve a mistura de três fatores: o primeiro, de ordem econômica, com os clubes grandes percebendo que era importante à presença dos negros em suas equipes, para os estádios ficarem lotados. E em conseqüência, mais renda para os cofres. O segundo fator foi à habilidade técnica dos negros em relação aos brancos. E o terceiro, a paixão pelo futebol.
Os negros foram segregados também no Rio Grande do Sul, pois, tendo perdido espaço de trabalho para os imigrantes europeus, saíram do campo para a cidade, no chamado êxodo rural, e passaram a habitar as favelas, segundo um processo característico de marginalização.
Nesse tempo o futebol já havia alcançado grande destaque no sul do país, o que fez com que os negros também o praticassem. Clubes como o Grêmio, Internacional e Cruzeiro de Porto Alegre, porém, não os aceitavam em seus quadros.
Inconformados, os excluídos formaram entre 1911 e 1912, a Liga Nacional de Futebol Porto Alegrense, pejorativamente chamada pelos brancos de Liga da Canela Preta, onde qualquer indivíduo podia jogar independentemente da raça. Em 1922, a liga tradicional abriu a segunda divisão, ocasionando oportunidades para jogadores negros. Os de maior habilidade acabaram por preencher lugares em clubes de expressão como o Internacional.
Em 1928, o jogador Dirceu Alves, do 8 de Setembro, filho de pai branco e mãe mulata, se tornou o primeiro jogador não branco a vestir a camisa do clube colorado. Logo após, outros conquistaram espaço. Com seu campeonato enfraquecido, veio a decadência e o conseqüente fechamento da Liga da Canela Preta.
Pena que durante a grande enchente de 1941, em Porto Alegre, toda a documentação sobre a Liga foi destruída. Só restou o resgate oral dessa história. Alguns clubes que fizeram parte da Liga foram o 8 de Setembro, Palmeiras, Bento Gonçalves e Rio Grandense, este último dirigido por Francisco Rodrigues, pai do famoso compositor Lupicicio Rodrigues.
Nas cidades de Pelotas e Rio Grande, também existiram ligas exclusivas para times negros. Algumas fotografias publicadas na imprensa pelotense em 1931 mostram que alguns times da Liga José do Patrocínio aceitavam atletas "mulatos", caso do S.C. Universal. Outros como G.S. Sul América, o G.S. Vencedor e G.S. Luzitano eram compostos exclusivamente por indivíduos negros.
Em Rio Grande a liga dos negros era a Rio Branco. Mas não se tem maiores registros sobre sua atividade: quando foi fundada, quantos clubes eram a ela filiados e nem quando acabou.
O compositor Lupicínio Rodrigues, torcedor e autor do hino do Grêmio Portoalegrense conta que seu afeto ao clube tricolor, se deve a um fato ocorrido no início do século passado, envolvendo o time de futebol de seu pai, o Rio-Grandense. O clube desejava ingressar na liga principal de Porto Alegre, mas foi barrado pelo Internacional.
Em outubro de 1920 tivemos um dos piores momentos proporcionados pela intolerância. Quando a seleção Brasileira foi até Buenos Aires jogar uma partida amistosa contra a Argentina, em benefício do “Asilo de Huérfanos Militares”, o jornalista e advogado uruguaio Antonio Palacio Zino, do periódico porteño “La Crônica”, destilou todo o seu racismo e desconsideração ao Brasil.
A manchete da página de esportes estampava: "Monos em Buenos Aires" (Macacos em Buenos Aires). A matéria estava acompanhada de uma charge em que jogadores e integrantes da delegação brasileira eram mostrados como macacos. O texto, bastante ofensivo, chamava os brasileiros de “macaquitos” e ironizava a conduta moral de nossas mulheres. Eis o artigo, devidamente traduzido para o português.
“E estão os macaquinhos em terras argentinas. Hoje (6-10-20)) temos de acender a luz às 4h da tarde, pois os temos visto passeando pelas ruas, aos saltos (…) No carnaval, os maridos se abrem e as mulheres vão para a festa, como lhes dá vontade. Por isso que, cada vez que nasce uma criança, o casal tenta descobrir com qual vizinho se parece (…) A uma hora e meia da bela capital brasileira,gente inocente é degolada, se assalta sem medo e é latente a escravidão em suas nuances selvagens”.
Se um comentário desse teor fosse feito nos dias de hoje, certamente haveria um incidente diplomático entre Brasil e Argentina, com resultados inimagináveis.
O jogo foi inicialmente marcado para 3 de outubro, porém uma forte chuva provocou a transferência para o dia 6. Horas antes do jogo, o jornalista racista teve a cara de pau de visitar a delegação brasileira no hotel onde estava hospedada, e acabou sendo agredido pelo jogador Sisson, capitão da equipe do Brasil. Enquanto apanhava, gritava em bom castelhano: “Brincadeira, brincadeira” . Teve sorte, pois outros também queriam lhe surrar, mas foram evitados pela turma do “deixa disso”.
Na hora de entrar no gramado do estádio do Sportivo Barracas, outrora a casa principal da seleção argentina, o Brasil não tinha um time completo. Do grupo, só sobraram seis jogadores dispostos a entrar em campo. Então, foi preciso escalar o ex-jogador Osvaldo Gomes, autor do primeiro gol da história da seleção e agora chefe da delegação brasileira, e mais quatro “enxertos” argentinos: Balgorri, Rosado, Solari e Castro.
Mal o jogo começou, e os 3 mil torcedores presentes ao estádio se deram conta que o onze brasileiro estava “remendado”, e passaram a atirar objetos no gramado. O árbitro teve de interromper o jogo, tal os protestos. Como não tinha condições de devolver o dinheiro aos torcedores, aconteceu um acordo no mínimo estranho: os argentinos saíram do time brasileiro e o jogo prosseguiu com sete jogadores para cada lado. A Argentina venceu por 3 X 2. Depois do jogo, os argentinos ofereceram uma festa em homenagem aos brasileiros e um pedido formal de desculpas. (Pesquisa: Nilo Dias)
A charge em que os brasikeiros apareciam como macacos.
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