O Brasil inteiro assistiu durante quase duas semanas uma verdadeira novela em torno do jogador negro Ronaldinho Gaúcho. Três dos maiores clubes do país – Grêmio, Palmeiras e Flamengo - brigaram intensamente para tê-lo em suas fileiras. Verdadeiras fortunas foram oferecidas, até que finalmente o pretendente carioca levou a melhor.
Mas nem sempre o negro foi valorizado como está sendo agora no futebol brasileiro. Quando o futebol aqui chegou em 1894, vindo da Inglaterra, era um esporte praticado só por representantes da elite dominante. Negros e brancos pobres eram excluídos. Dizia-se que “branco pobre, preto é”. Nesse nobre esporte não tinha lugar para os que não fossem “brancos e de boas famílias, sãos, puros, cordiais, ricos e de origem letrada”. Então, os negros não tinham a menor chance de ingressarem nesse ambiente fechado.
O público também acompanhava a elegância, sofisticação e modernidade do esporte. Assistir a jogos no estádio do Fluminense, por exemplo, era um evento social. Os negros e brancos pobres estavam nitidamente alijados do jogo e até mesmo da torcida. Para tanto, as ligas criaram mecanismos, como a cobrança de altas taxas de filiação, de modo a fazer do futebol um espaço de diferenciação e uma marca da “superioridade” da elite branca e abastada.
E não era só o futebol que fechava as portas para os negros. Naqueles tempos o turfe tinha muitos aficcionados nas cidades brasileiras e o remo atraía os jovens das boas famílias, proporcionando a fundação de clubes e as atenções de um público amplo até a primeira década do século XX. Impensáveis para negros. Jogadores e público, tudo pertencia a um grupo social comum.
Em várias capitais do Brasil, clubes de elite praticavam o futebol. Em São Paulo, Germânia e Paulistano eram referências das elites locais. O Paulistano chegou a ter um negro no time no começo do século, mas este era da elite, Friedenreich.
No Rio Grande do Sul o Grêmio Portoalegrense formou-se para a prática do futebol em 1903 e constituiu um clube calcado na experiência anterior de associatividade esportiva entre os teuto-brasileiros (ginástica, remo, esgrima), tecendo teias entre estes grupos de sucesso originários da emigração européia e outros grupos dominantes locais.
O futebol e as primeiras ligas foram criados para atender as elites sociais, formadas por cidadãos de origem branca, ficando para as classes economicamente menos privilegiadas, na sua maioria compostas por cidadãos de origem negra, o direito de jogar em ligas clandestinas.
Até o final dos anos 1920 nenhum clube que se prezasse ousava lançar um negro em seu time. A presença de alguns jogadores negros nos clubes menores era tolerada pela aristocracia, desde que tal presença não incomodasse o poder dos grandes clubes.
A crença geral era de que os negros se constituíam em seres inferiores. Desde que os primeiros deles chegaram ao Brasil para trabalhar nas lavouras de cana de açúcar, que foram vistos assim. Como eram escravos tinham muitos deveres, nenhum direito e eram totalmente submissos ao homem branco.
Em 1888 veio a abolição da escravidão, mas não foi acompanhada de um mínimo de condições para que os negros e seus descendentes pudessem começar uma nova vida. A liberdade só existia na letra fria da lei. Na realidade, continuavam reféns da boa vontade dos brancos e vítimas de toda a espécie de preconceito. Não tinha como isso não repercutir no futebol.
Apesar de tudo, o processo de apropriação popular do novo esporte não demorou a chegar. Crianças e adultos começaram a bater bola ao ar livre, nas ruas, campinhos de terra e onde quer que fosse possível.
A simplicidade das dezessete regras do futebol facilitava a popularização do novo esporte. A bola podia ser improvisada. Qualquer coisa arredondada servia. Um maço de folhas de jornal enfiado num pé de meia, jornal amassado amarrado com barbante, ou simplesmente uma laranja ou uma lata velha amassada. E até mesmo uma tampinha de cerveja.
Logo que os negros começaram a jogar futebol por aqui, tiveram de enfrentar regras rígidas, que só valiam para eles: não podiam derrubar, empurrar, ou mesmo esbarrar nos adversários brancos. Se assim agissem, eram punidos severamente. Já os demais jogadores e até os policiais podiam bater no infrator. Os brancos, no máximo, eram expulsos de campo. E tudo isso com a complacência dos árbitros, que eram todos brancos. Até a maioria do público que assistia aos jogos, era de predominância branca.
Essa diminuição dos espaços dentro de campo, originária de uma situação social obrigou os negros a tomarem mais cuidados, jogarem com mais ginga, com mais habilidade, evitando o contato físico. Assim o negro criou o drible, que não é outra coisa que a criação de espaço, onde o espaço não existe. Sem dúvida, foi o jogador negro que imprimiu no futebol brasileiro um estilo próprio de magia e arte.
O primeiro negro a alcançar sucesso no futebol brasileiro foi Arthur Friedenreich, um mulato de olhos verdes. Era tolerado por ser filho de pai alemão, embora a mãe fosse uma lavadeira negra brasileira. Fried, como era chamado pelos companheiros, jogou até na seleção. Morreu sem ter nunca admitido que nas suas veias corria sangue negro.
Ele costumava chegar atrasado aos jogos e se enfurnava no vestiário, tentando alisar e prender os cabelos crespos com brilhantina, para não ser visto pela multidão como o mulato que era. Naquela época, negro que quisesse jogar em time de branco, tinha de colocar uma touca na cabeça, para esconder o cabelo crespo. Os pretos do futebol, à medida que ascendiam, procuravam ser menos pretos. Sabe-se de casos até de operações plásticas, para fugir da cor.
No capítulo do racismo na história do futebol brasileiro, são muitos os casos dignos de registro. Episódios de discriminação e preconceito que incluíam atitudes humilhantes dos dirigentes de clubes diante dos atletas negros.
No aristocrático Fluminense F.C., do Rio de Janeiro tivemos o famoso episódio racista do "pó-de-arroz”. Para poder jogar no time, sem aparecer como preto diante da multidão que lotava os estádios, o jogador Carlos Alberto, vindo do América tinha de disfarçar a cor da pele. De colocar a máscara branca. Para isso, cobria o brilho negro mestiço de seu rosto com espessas camadas de pó-de-arroz. Robson, também ex-jogador do próprio Fluminense disse uma ocasião: “Eu já fui preto e sei o que é isso.”
Em 1923, o América F.C. foi buscar na área portuária do Rio de Janeiro, um marinheiro negro apelidado de “Manteiga”, para dar mais força e combatividade ao seu time. O apelido se devia a qualidade dos passes oriundos de seus pés, “vindos como se tivessem manteiga”, diziam.
No dia da estréia, quando ele se preparava para entrar em campo, outros jogadores do time saíram do vestiário, por preconceito, e negaram-se a jogar. Depois foram acompanhados por mais nove jogadores do primeiro e do segundo time, que insatisfeitos pediram demissão.
Por causa disso “Manteiga” não quis mais saber do América. O ano era de 1922, quando ele pegou a mala e se mudou para a Bahia. Lá, o cenário era bem menos racista que no Rio de Janeiro. Na Bahia se sentia em casa, bem ao contrário do Rio onde tinha de andar "quase fugido", escreveu Mario Filho, no livro “O negro no futebol brasileiro”.
Mesmo que Salvador tenha sido a cidade pioneira no Brasil no livre acesso de negros na liga de futebol principal, se sabe que a primeira liga baiana de futebol, fundada em 1904, era chamada de “Liga Branca”. Em 1912, fruto de conflitos surgiu a "Liga Democrática", que supostamente permitia a participação de atletas negros.
Também tivemos o caso do jogador Hércules, que se casou com uma associada branca do Fluminense. Em represália o clube proibiu o ingresso de atletas nos seus quadros sociais, num claro recado para que “Hércules soubesse qual era o seu lugar”. Hércules foi um dos raros jogadores negros que se deu bem na vida, naqueles anos difíceis. Quando pendurou as chuteiras, em 1946, era dono de casas e terrenos em São Paulo. (Pesquisa: Nilo Dias)
Friedenreich, nunca admitiu que tinha sangue negro.
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