Tem pessoas que não deveriam morrer. Bento Peixoto Castelã era uma delas. Alegre, sempre com uma resposta inteligente e divertida na ponta da língua. Foi o “terror” dos repórteres esportivos da época. Meu amigo e compadre, até hoje sinto sua falta.
Bento foi jogador de futebol. Centro-avante a moda antiga, daqueles que levavam os zagueiros por diante. Jogou nos três times de Pelotas, mas era “xavante” de coração.
Foi treinador dos profissionais do Brasil por duas vezes, em 1973 e 1979, num total de 14 jogos. Depois que deixou o futebol profissional se dedicou ao futebol de salão do clube rubro-negro pelotense. Foi a consagração. Ganhou cinco títulos estaduais e outros tantos da cidade e o apelido de "Raposa do Parquê", porque era realmente um grande estrategista. (Em outras regiões do país "parquê" é conhecido por "taco")
Montou um time fabuloso. Carlota, goleiro vindo de Caxias do Sul, dono de um lançamento até hoje insuperável. Cassiano e Pedalão, que impunham respeito pela raça com que disputavam cada jogada. Peto, outro caxiense, chamado de “bailarino” tal a técnica que possuía. E Torino, o “Canhão da Baixada”, que também deixou nome no futebol de campo jogando no próprio Brasil e no Grêmio de Porto Alegre.
A fama de folclórico Bento começou a ganhar nesse tempo. E teve razões de sobra para isso. Certa vez o Brasil ia decidir o título salonista da cidade contra o Paulista F.C., no ginásio do E.C. Cruzeiro. O mando de jogo era do adversário, famoso por buscar ajuda do além entre as macumbeiras da cidade. Sabedor disso, Bento fez com que os jogadores de sua equipe entrassem no ginásio pulando o muro para escaparem de um possível feitiço no portão de acesso.
Outra ocasião, depois de ouvir criticas sobre o preparo físico de seus jogadores, “estaria faltando “gás”, Bento instalou ao lado do banco de reservas alguns tubos de oxigênio. Perguntado pelos repórteres para que serviria aquilo, respondeu: “é para dar mais gás ao time”.
A “Raposa do Parquê”, apelido criado pelo narrador esportivo Paulo Corrêa, da Rádio Pelotense, ganhou fama e chamou atenção dos clubes profissionais da cidade. Como treinador do G.A.Farroupilha, que andava mal das pernas, teve como auxiliar o não menos folclórico Antônio Freitas, o “Fervido”, também de saudosa memória.
Com menos de uma semana para treinar a equipe, Bento resolveu buscar ajuda fora de campo. Domingo, antes do jogo, no vestiário do Farroupilha, montou uma espécie de altar onde se misturavam imagens católicas e de umbanda. O time teria que jogar de branco e os diretores vestirem roupas claras.
O ritual não parou aí. Um por um, jogadores, diretores e funcionários deitaram no chão e bateram cabeça no altar, para pedir proteção e boa sorte. O resultado do jogo não lembro, mas sei que o Farroupilha venceu e motivou a repetição da cena até a primeira derrota.
A glória folclórica de Bento Castelã, porém, se deu no F.B.C. Rio-Grandense, de Rio Grande onde foi praticamente tudo: conselheiro, presidente e treinador. Tive a alegria de acompanhá-lo como assessor, tanto no futebol profissional como no de salão.
O “colorado da Noiva do Mar”, como o Rio-Grandense era chamado, jogava contra o Internacional de Santa Maria, no antigo Estádio Torquato Pontes, num sábado à tarde. Terminado o primeiro tempo um repórter correu, e antes que Bento entrasse no vestiário lascou a pergunta: “Como está vendo o jogo?”. Resposta pronta e seca: “Com os olhos”.
Certa feita o Rio-Grandense atravessava mais uma crise e não ganhava de ninguém. O repórter da rádio local querendo saber o que Bento Castelã achava daquele momento, perguntou: “Com toda sinceridade, você ainda tem fé nesse time?” Sem pestanejar veio a resposta: “Uns tem fé demais, outros fé de menos. Eu prefiro o meio-termo”.
Jogo contra o E.C. Uruguaiana. Primeiro tempo, escore em branco. O repórter veio para a tradicional entrevista de intervalo. “Bento, como corre esse time do Uruguaiana, não é mesmo?”. O treinador respondeu rápido: “Isso não é nada. Precisa ver eles correndo com muamba de Passo de los Libres para Uruguaiana”.
Certa ocasião o Rio-Grandense enfrentava o Cachoeira F.C., e para variar não podia nem empatar. Só a vitória interessava. Segundo tempo, 40 minutos, escore apertado de 1 X 0 e o adversário em cima a procura do gol de igualdade. Bento, para esfriar o adversário, invadiu o campo pedalando uma bicicleta que mandara buscar no vestiário. Imaginem a cena, Bento de bicicleta de um lado ao outro do gramado perseguido pelos jogadores do Cachoeira e pela Polícia.
O público em delírio. Até que as coisas se acalmassem passaram 10 longos minutos. Reiniciado o jogo os cachoeirenses não tiveram ânimo para buscar o empate e o jogo terminou com a vitória “colorada”.
No domingo seguinte o Rio-Grandense ia jogar no Joaquim Vidal, em Cachoeira do Sul. Para evitar ser linchado Bento viajou engessado e disse que havia sofrido um acidente de carro. Sob os olhares desconfiados dos cachoeirenses.
Decisão de vaga para a Divisão Principal com o Gaúcho de Passo Fundo. Estádio lotado e o Rio-Grandense perdendo no primeiro tempo. Bento pegou um revólver de brinquedo, colocou bem a mostra na cintura e foi bater na porta do vestiário do juiz. Quando este apareceu Bento sentenciou: “Se a gente perder esse jogo não sei o que poderá acontecer”.
O juiz não autorizou a realização do segundo tempo. Formou-se uma confusão enorme. A torcida protestou e os soldados da Brigada Militar evacuaram o campo com cavalos e espadas. O Rio-Grandense perdeu os pontos e a classificação.
No futebol de salão do Rio-Grandense um grande feito. O Ipiranga A.C. mantinha uma invencibilidade de três anos contra as equipes locais no campeonato da cidade. Bento escalou quatro zagueiros contra o poderoso adversário. Naquela época, depois de cinco faltas o jogador era substituído. Não existiam cobranças diretas sem barreira, como acontece hoje. Saía um zagueiro, entrava outro.
Os jogadores do Ipiranga entraram em desespero. O jogo próximo do fim e o placar em 0 X 0. A equipe se jogou toda para o ataque e a bola sobrou para um jogador do Rio-Grandense que estava no meio da quadra, sem marcação e apenas com o goleiro Piva à sua frente. Não deu outra, bola na rede e o Rio-Grandense cometendo o “crime”.
Naquela época nos tornamos os terrores dos árbitros salonistas de Rio Grande. Bento de técnico e eu de seu auxiliar,os dois sentados no banco de reservas. Mal começava o jogo e o Bento perguntava: "Quem vai expulso primeiro, eu ou tu". E quem se habilitava esperava o outro na copa do Ginásio de esportes. E dê-lhe cachaça com limão. E o importante, sem violência, só na gozação para delirio dos torcedores. Tempo bom, que deixou muita saudade.
Bento foi durante alguns anos o responsaável pelo Cartório do Foro de Rio Grande. Foi ele que recebeu todo o processo envolvendo a "fabulosa" herança do comendador Domingos Faustino Corrêa, o mais longo da história judiciária do Brasil.
O processo, que ocupava 13 estantes e uma sala inteira do Foro de Rio Grande tornou-se documento histórico e foi doado ao Centro de Documentação Histórica (CDH), da Fundação Universidade Federal do Rio Grande (Furg). A decisão de doação à Furg foi do Conselho da Magistratura do Tribunal de Justiça do Estado, em sessão realizada dia 30 de maio de 2011.
O processo, que tramitou durante 107 anos, já está no CDH, que vai abrigar, tratar e preservar a história da migração de centenas de famílias que se habilitaram a receber a “herança” do comendador. São 500 caixas devidamente catalogadas, graças ao trabalho da pesquisadora e servidora do Foro estadual Virgilina Fidelis de Palma. O material contém dados desde o ano de 1874, quando começou a disputa pela mais famosa herança do Brasil e que inclui “herdeiros” em várias regiões e até outros países.
Eu não lembro a data em que Bento Castelã faleceu. Sei que se encontrava no Café Aquário, centro de Pelotas, local de encontro de desportistas e de todos os tipos de pessoas, quando sofreu um infarto fulminante. (Texto: Nilo Dias)
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