terça-feira, 13 de dezembro de 2016

Querer é poder: cegos treinam futebol

Diz o ditado que em terra de cego quem tem um olho é rei. E com quem não tem nenhum, como é que fica? Duas histórias de cegos que se tornaram treinadores de clubes de futebol dão margem a que se pense nisso.

A revista “Kickoff”, da África do Sul contou a história de Dumisani Ntombela, de 28 anos, técnico do “Silver Spears”, um time amador da cidade de Vosloorus, próximo a Joanesburgo. O blog “Verminosos por futebol” nos conta a trajetória de Flávio Aurélio Silva, treinador de uma equipe amadora em Fortaleza, Ceará.

E Paul Matheson, cego há 10 anos, é treinador na “Henshaws Society for Blind People”, entidade voltada a deficientes visuais na Inglaterra.

O sul-africano teve os olhos extraídos aos dois anos, após um câncer. Diante da difícil condição de vida, o futebol se tornou uma importante válvula de escape. Principalmente a partir dos oito anos, quando Ntombela lançou sua própria equipe, em 1998.

No ano seguinte, ele virou treinador do Silver Spears. Hoje, comanda um time de adultos, o sub-19 e a equipe feminina. Acima de tudo, o técnico se tornou um líder de sua comunidade.

“Deus opera em nossos caminhos coisas que são inexplicáveis. Eu escuto o que está acontecendo em campo, e isso me ajuda a sentir o jogo”, contou o sul-africano à revista. Para quem enxerga só com os olhos, é difícil compreender.

O inglês perdeu a visão há dez anos por causa de um dano no nervo óptico. Consequência do glaucoma. É o único técnico de futebol deficiente visual certificado pela Federação Inglesa.

O futebol deprimiu Matheson. Obcecado pelo esporte e jogador amador, demorou a assimilar que não poderia mais entrar em campo e nem assistir aos jogos do seu amado Newcastle United no estádio Saint James Park, que frequenta desde que tinha cinco anos.

O próprio futebol viria a salvar Matheson. Convidado pela “Henshaws Society for Blind People”, entidade voltada a deficientes visuais na Inglaterra, começou a praticar a modalidade paraolímpica, em que a bola tem um dispositivo que emite sons para que os jogadores saibam onde ela está.

No início, ele não queria. Achava que aquilo não era futebol. Quando tentou a primeira vez, foi pior ainda. Ele ficava parado em campo, esperando a bola chegar, em vez de seguir o som.

Mas aos poucos, foi se acostumando e se reencontrando com a paixão de infância. Com a ajuda da “Newcastle United Foundation”, começou a treinar futsal para crianças em uma quadra aos pés do estádio que ainda frequenta religiosamente todas as temporadas do time profissional.

Com o tempo, passou da molecada aos adultos. E garante que o futebol lhe deu a vida de volta e agora quer retribuir. Confessa que tudo é muito mais do que apenas um jogo.

Matheson quer se especializar no esporte voltado para deficientes visuais. Também como técnico. Garante ter muitas ideias para contribuir com o desenvolvimento da modalidade.

Não possui qualquer pretensão profissional no futebol "normal" de 11 contra 11. Acho que pode retribuir para o futebol tudo o que ele lhe deu. Quer estar dentro do esporte de alguma forma, enxergando além da visão.

Já o brasileiro Flávio teve um baque que mudou sua vida aos 20 anos. Membro fundador do Juventude Esporte Clube, time amador do bairro Bom Jardim, de Fortaleza, o volante perdeu a visão no olho direito após sofrer falta violenta num jogo em 1989, em Caucaia, na Região Metropolitana.

Um ano depois da pancada no rosto, a cegueira afetou o outro olho. Seu mundo caiu, mas o futebol tratou de reerguê-lo. O Juventude, com mais de 390 anos de vida, é o time amador mais tradicional de Fortaleza, que conta com 56 ligas de bairros, dois mil times amadores, 50 mil jogadores e 200 campos.

O Juventude é filiado á 20 anos na Liga da Granja Lisboa, que reúne participantes do Grande Bom Jardim, e é o maior campeão, com cinco títulos. Flávio, hoje com 46 anos, conta que foi  fundador, jogador e agora do time do seu coração

A cegueira não foi motivo para deixar o clube. Passou a ajudar a Diretoria, tornando-se uma espécie de “faz-tudo”. Ficou encarregado de marcar jogos, preparava os uniformes e até motivava o time.
Em 2005, o até então treinador da equipe resolveu se aposentar. Foi a oportunidade que Flávio esperava para ser o técnico, mesmo com o problema da cegueira. Foi assim que começou uma história única no Brasil: um cego treinar uma equipe de futebol.

Em razão da cegueira o treinador tem na audição a principal forma de orientar a equipe. Costuma se posicionar na lateral de campo, do lado da defesa.

Ouve o movimento da bola e dos jogadores, para tomar suas decisões. E garante que não se envergonha em ouvir dicas de jogadores e torcedores. “Não tenho assistente, mas todos me ajudam”.

Não falta quem diga que ele enxerga melhor do que muito treinador que consegue ver. Casio do eletricista Deone Lopes, de 33 anos, centro-avante do time. Ele garante que a perseverança de Flávio empurra os jogadores.

Flávio, mais do que treinador, serve de inspiração para o elenco. Todos os jogadores trabalham durante a semana, e só comparecem aos jogos nos domingos, por causa do Flávio, garante o meia André Barbosa “Piaba”, 35 anos, servente de pedreiro.

O treinador nasceu no Bom Jardim, mas hoje mora no Conjunto Curió, distante 20 km. Para chegar ao campo, pega três ônibus e passa por dois terminais, em 1h30min de viagem. O presidente do Juventude, José Lisboa, cita o fato de Flávio reclamar de lances mesmo sem estar vendo nada.

Mesmo aposentado por invalidez, Flávio faz bico como vendedor de cintos de couro. Quinzena sim, quinzena não, pede licença ao Juventude para viajar o Brasil com seus produtos na mochila, em ônibus interestaduais.

Em Belo Horizonte, casualmente ele conheceu sua esposa, com quem tem duas filhas. “Foi um choque de bengalas. Ela também é cega”, conta.

O Juventude do Bom Jardim veste uniforme com escudo do Esporte Clube Juventude, time de Caxias do Sul (RS). Até mesmo o ano de fundação do clube gaúcho (1913) foi mantido, apesar de o Juventude fortalezense ter sido fundado sete décadas depois, em 1985.

A reportagem do site “Verminosos por Futebol”, sobre o treinador cego, foi responsável pela empresa “Fackel Sports”, fabricante cearense de material esportivo, doar um fardamento completo ao Juventude.

“Galeguim”, diretor do clube, garante que o Juventude nunca teve um fardamento tão bonito em toda a sua história. Foram entregues 18 camisas e calções, com design no nível de clube profissional.
A “Fackel Sports” foi fundada em 2000, em Fortaleza.

A origem do nome “Fackel” surgiu durante as olimpíadas de Sidney. A inspiração veio da tocha olímpica. A primeiro marca pensada foi “Torch” que significa tocha de fogo.

Assim nasceu a “Fackel Sports”. Na época o dono da empresa, Potyguara Junyor, era jogador profissional. A empresa” já produziu  uniformes para o Messejana, Tiradentes, São Benedito e Crateús, além do material de treino do Ferroviário.

O presidente da Federação Cearense de Futebol (FCF), Mauro Carmélio, que também é um dos coordenadores da Confederação Brasileira de Futebol (CBF) no Nordeste, fez uma homenagem a Flávio Aurélio Silva.

O dirigente o recebeu na sede da Federação e presenteou o clube com uniformes titular e reserva, roupas de treinador e 10 bolas oficiais. E Flávio ainda ganhou uma bola da Copa do Mundo de 2014. 


Dumisani Ntombela, é técnico do “Silver Spears”, time amador da África do Sul. (Foto: Divulgação)

Flávio Aurélio Silva, treinador do Juventude, time amador de Fortaleza (CE). (Fotos: Site "Verminosos por Futebol")

Paul Mathesoné treinador em uma entidade voltada para futebol de deficientes visuais na Inglaterra. (Foto: Divulgação)

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