Diz
o ditado que em terra de cego quem tem um olho é rei. E com quem não tem
nenhum, como é que fica? Duas histórias de cegos que se tornaram treinadores de
clubes de futebol dão margem a que se pense nisso.
A
revista “Kickoff”, da África do Sul contou a história de Dumisani Ntombela, de
28 anos, técnico do “Silver Spears”, um time amador da cidade de Vosloorus, próximo
a Joanesburgo. O blog “Verminosos por futebol” nos conta a trajetória de Flávio
Aurélio Silva, treinador de uma equipe amadora em Fortaleza, Ceará.
E
Paul Matheson, cego há 10 anos, é treinador na “Henshaws Society for Blind
People”, entidade voltada a deficientes visuais na Inglaterra.
O
sul-africano teve os olhos extraídos aos dois anos, após um câncer. Diante da
difícil condição de vida, o futebol se tornou uma importante válvula de escape.
Principalmente a partir dos oito anos, quando Ntombela lançou sua própria
equipe, em 1998.
No
ano seguinte, ele virou treinador do Silver Spears. Hoje, comanda um time de
adultos, o sub-19 e a equipe feminina. Acima de tudo, o técnico se tornou um
líder de sua comunidade.
“Deus
opera em nossos caminhos coisas que são inexplicáveis. Eu escuto o que está
acontecendo em campo, e isso me ajuda a sentir o jogo”, contou o sul-africano à
revista. Para quem enxerga só com os olhos, é difícil compreender.
O
inglês perdeu a visão há dez anos por causa de um dano no nervo óptico.
Consequência do glaucoma. É o único técnico de futebol deficiente visual
certificado pela Federação Inglesa.
O
futebol deprimiu Matheson. Obcecado pelo esporte e jogador amador, demorou a
assimilar que não poderia mais entrar em campo e nem assistir aos jogos do seu
amado Newcastle United no estádio Saint James Park, que frequenta desde que
tinha cinco anos.
O
próprio futebol viria a salvar Matheson. Convidado pela “Henshaws Society for
Blind People”, entidade voltada a deficientes visuais na Inglaterra, começou a
praticar a modalidade paraolímpica, em que a bola tem um dispositivo que emite
sons para que os jogadores saibam onde ela está.
No
início, ele não queria. Achava que aquilo não era futebol. Quando tentou a
primeira vez, foi pior ainda. Ele ficava parado em campo, esperando a bola
chegar, em vez de seguir o som.
Mas
aos poucos, foi se acostumando e se reencontrando com a paixão de infância. Com
a ajuda da “Newcastle United Foundation”, começou a treinar futsal para
crianças em uma quadra aos pés do estádio que ainda frequenta religiosamente
todas as temporadas do time profissional.
Com
o tempo, passou da molecada aos adultos. E garante que o futebol lhe deu a vida
de volta e agora quer retribuir. Confessa que tudo é muito mais do que apenas
um jogo.
Matheson
quer se especializar no esporte voltado para deficientes visuais. Também como
técnico. Garante ter muitas ideias para contribuir com o desenvolvimento da
modalidade.
Não
possui qualquer pretensão profissional no futebol "normal" de 11
contra 11. Acho que pode retribuir para o futebol tudo o que ele lhe deu. Quer
estar dentro do esporte de alguma forma, enxergando além da visão.
Já
o brasileiro Flávio teve um baque que mudou sua vida aos 20 anos. Membro
fundador do Juventude Esporte Clube, time amador do bairro Bom Jardim, de
Fortaleza, o volante perdeu a visão no olho direito após sofrer falta violenta
num jogo em 1989, em Caucaia, na Região Metropolitana.
Um
ano depois da pancada no rosto, a cegueira afetou o outro olho. Seu mundo caiu,
mas o futebol tratou de reerguê-lo. O Juventude, com mais de 390 anos de vida,
é o time amador mais tradicional de Fortaleza, que conta com 56 ligas de
bairros, dois mil times amadores, 50 mil jogadores e 200 campos.
O
Juventude é filiado á 20 anos na Liga da Granja Lisboa, que reúne participantes
do Grande Bom Jardim, e é o maior campeão, com cinco títulos. Flávio, hoje com
46 anos, conta que foi fundador, jogador
e agora do time do seu coração
A
cegueira não foi motivo para deixar o clube. Passou a ajudar a Diretoria,
tornando-se uma espécie de “faz-tudo”. Ficou encarregado de marcar jogos,
preparava os uniformes e até motivava o time.
Em
2005, o até então treinador da equipe resolveu se aposentar. Foi a oportunidade
que Flávio esperava para ser o técnico, mesmo com o problema da cegueira. Foi
assim que começou uma história única no Brasil: um cego treinar uma equipe de
futebol.
Em
razão da cegueira o treinador tem na audição a principal forma de orientar a
equipe. Costuma se posicionar na lateral de campo, do lado da defesa.
Ouve
o movimento da bola e dos jogadores, para tomar suas decisões. E garante que
não se envergonha em ouvir dicas de jogadores e torcedores. “Não tenho
assistente, mas todos me ajudam”.
Não
falta quem diga que ele enxerga melhor do que muito treinador que consegue ver.
Casio do eletricista Deone Lopes, de 33 anos, centro-avante do time. Ele
garante que a perseverança de Flávio empurra os jogadores.
Flávio,
mais do que treinador, serve de inspiração para o elenco. Todos os jogadores
trabalham durante a semana, e só comparecem aos jogos nos domingos, por causa
do Flávio, garante o meia André Barbosa “Piaba”, 35 anos, servente de pedreiro.
O
treinador nasceu no Bom Jardim, mas hoje mora no Conjunto Curió, distante 20
km. Para chegar ao campo, pega três ônibus e passa por dois terminais, em
1h30min de viagem. O presidente do Juventude, José Lisboa, cita o fato de
Flávio reclamar de lances mesmo sem estar vendo nada.
Mesmo
aposentado por invalidez, Flávio faz bico como vendedor de cintos de couro.
Quinzena sim, quinzena não, pede licença ao Juventude para viajar o Brasil com
seus produtos na mochila, em ônibus interestaduais.
Em
Belo Horizonte, casualmente ele conheceu sua esposa, com quem tem duas filhas.
“Foi um choque de bengalas. Ela também é cega”, conta.
O
Juventude do Bom Jardim veste uniforme com escudo do Esporte Clube Juventude,
time de Caxias do Sul (RS). Até mesmo o ano de fundação do clube gaúcho (1913) foi
mantido, apesar de o Juventude fortalezense ter sido fundado sete décadas
depois, em 1985.
A
reportagem do site “Verminosos por Futebol”, sobre o treinador cego, foi
responsável pela empresa “Fackel Sports”, fabricante cearense de material
esportivo, doar um fardamento completo ao Juventude.
“Galeguim”,
diretor do clube, garante que o Juventude nunca teve um fardamento tão bonito
em toda a sua história. Foram entregues 18 camisas e calções, com design no
nível de clube profissional.
A
“Fackel Sports” foi fundada em 2000, em Fortaleza.
A
origem do nome “Fackel” surgiu durante as olimpíadas de Sidney. A inspiração
veio da tocha olímpica. A primeiro marca pensada foi “Torch” que significa
tocha de fogo.
Assim
nasceu a “Fackel Sports”. Na época o dono da empresa, Potyguara Junyor, era
jogador profissional. A empresa” já produziu
uniformes para o Messejana, Tiradentes, São Benedito e Crateús, além do
material de treino do Ferroviário.
O
presidente da Federação Cearense de Futebol (FCF), Mauro Carmélio, que também é
um dos coordenadores da Confederação Brasileira de Futebol (CBF) no Nordeste,
fez uma homenagem a Flávio Aurélio Silva.
O
dirigente o recebeu na sede da Federação e presenteou o clube com uniformes
titular e reserva, roupas de treinador e 10 bolas oficiais. E Flávio ainda
ganhou uma bola da Copa do Mundo de 2014.
Dumisani
Ntombela, é técnico do “Silver
Spears”, time amador da África do Sul. (Foto: Divulgação)
Flávio Aurélio Silva, treinador do Juventude, time amador de Fortaleza (CE). (Fotos: Site "Verminosos por Futebol")
Paul Mathesoné
treinador em uma entidade voltada para futebol de deficientes visuais na Inglaterra. (Foto: Divulgação)
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