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sexta-feira, 14 de janeiro de 2011

A intolerância entra em campo (III)

O primeiro time a escalar um negro no Brasil foi o Bangu A.C., em 14 de maio de 1905, em jogo amistoso disputado contra o Fluminense, no Jardim da Fábrica Bangu. O jogador foi Francisco Carregal e o Bangu venceu a partida por 5 x 3. Em 1911, o clube industrial ganhou o campeonato carioca da segunda divisão, tendo em sua equipe quatro jogadores negros.

Mesmo que a CBF considere o C.R. Vasco da Gama pioneiro na aceitação de negros em sua equipe, a Assembléia Legislativa do Rio de Janeiro pensa diferente. Tanto que em 2001 agraciou o Bangu A.C. com a Medalha Tiradentes, por ter sido o primeiro clube carioca a contar com jogadores de cor preta em seu grupo.

Pelos quadros do Bangu, ao longo da história passaram inúmeros jogadores negros importantes no futebol brasileiro, como Luiz Antônio da Guia, irmão mais velho de Domingos da Guia. Ele foi o atleta que por mais tempo defendeu um único clube de futebol no Brasil, de 1912 até 1931. Fora o Bangu, só vestiu a camisa da seleção carioca. Contam que nunca foi convocado para a seleção brasileira, por ser negro.

O América Mineiro foi fundado por jovens da elite de Belo Horizonte, em 1912. Entre seus fundadores estava um negro, Geraldino de Carvalho que fez parte do time que conquistou o decacampeonato mineiro, entre 1916 a 1925. Em razão disso, mesmo sendo considerado historicamente um clube elitista, o América guarda a honra de ter sido o primeiro a admitir um negro em Diretoria. Também foi o primeiro clube a ter um negro entre seus fundadores.

Em 1950, o Brasil perdeu a Copa do Mundo para o Uruguai, em pleno Maracanã. Os atletas negros e mulatos do time, como Barbosa, Bigode, Zizinho e Jair foram responsabilizados pelo fracasso. A imprensa de Norte a Sul do país dizia que faltara coragem, fibra e raça aos jogadores.

Os negros enfrentaram tempos difíceis, sendo considerados como atletas fadados ao fracasso, por não terem estrutura emocional para grandes jogos internacionais, já que sentiam muita saudade de casa. O talento de Leônidas da Silva, na Copa de 1936 fora totalmente esquecido.

Quem mais sofreu com isso foi o goleiro Barbosa, que carregou esse estigma pelo resto da vida. A partir daí firmou-se a convicção de que os goleiros negros não eram bons, sendo raros os que conseguiram jogar em grandes clubes e na seleção.

O grande salto de qualidade para o negro no futebol brasileiro, aconteceu graças a Pelé, que sempre fez questão de dizer que era preto. Com isso ele se sentia bem, pois exaltava a mãe, o pai, a avó, o tio, a família pobre de pretos que o preparou para a glória. Nenhum preto, no mundo contribuiu mais para varrer barreiras raciais do que Pelé.

E Pelé orgulha-se de nunca ter precisado esticar os cabelos. Foi e ainda é aplaudido e respeitado no mundo inteiro pelo que é: preto como o pai, como a mãe, como a avó, como o tio, como os irmãos. E ele não se incomoda quando os demais pretos do futebol brasileiro o chamam de “Pelé, o crioulo”.

Mas nem por isso Pelé escapou de ser vitima de racismo. Ele relata em sua biografia, há pouco lançada, ter passado por uma situação dessas em sua juventude: “Houve uma garota, uma das primeiras, por quem eu sentia uma atração muito forte, mas o pai dela acabou com tudo: chegou na escola um dia e deu uma bronca nela por estar conversando comigo. "O que você está fazendo com esse negrinho?", gritava.

Foi a primeira vez, creio, que tive contato direto com o racismo, e foi absolutamente chocante. Minha namorada era branca, mas nunca tinha me passado pela cabeça que alguém pudesse se incomodar com aquilo – ou comigo”, conta Pelé no livro escrito por Orlando Duarte e Alex Bellos.

A redenção da tragédia de 1950 veio oito anos depois. Em 1958, na Suécia o Brasil finalmente se sagrou campeão do mundo, com um time repleto de negros e mulatos como Pelé, Garrincha, Didi, Djalma Santos, Rubens, Índio, Oreco. Caia por terra a teoria de que negros não tinham condições psicológicas para serem vencedores.

Em 1962, 1970, 1994 e 2002 o Brasil voltou a ser campeão do mundo. Nenhuma seleção possui tantos títulos como a nossa. É verdade que a situação já foi muito pior para os jogadores negros. Mas falta muito para que ocupem de vez um espaço de valor no futebol brasileiro.

Nem todos têm a mesma sorte de Ronaldo Fenômeno, Adriano, Ronaldinho Gaúcho e outros negros e mulatos que se tornaram astros de primeira grandeza do futebol mundial, e ficaram multimilionários. Mesmo que a maioria dos jogadores que atua no Brasil seja de negros e mulatos, eles ainda lutam contra o velho racismo, ganham menos que os brancos e não tem no esporte uma garantia de ascensão social.

Questionários feitos com 327 jogadores de 17 clubes do Rio de Janeiro mostraram que, enquanto 26.6% dos atletas brancos ganham até um salário mínimo, entre os negros a proporção é de 48.1%. No total de jogadores, é de 34.9%. No alto da pirâmide salarial, 24.8% dos brancos ganham mais de 20 salários mínimos. Entre os negros, o percentual é de 14.8%, abaixo do verificado no conjunto de jogadores (17.1% ganhando mais de 20 salários mínimos).

Os atletas negros ainda enumeraram diferenças: o salário deles costuma atrasar mais, recebem menos convites para sair com os cartolas ou são tratados com desprezo. Outra discriminação está no tratamento: macaco, crioulo, gorila.

Muitos casos de discriminação de jogadores negros no futebol brasileiro foram relatados ao longo da trajetória do esporte no país. Nos anos 20, o presidente da República, Epitácio Pessoa recomendou que não fossem incluídos mulatos na seleção brasileira que foi a Buenos Aires, para disputar o Campeonato Sul-Americano. Para o Presidente era importante projetar outra imagem do povo brasileiro no exterior, e era “absolutamente imperioso que o país fosse representado pela sua melhor sociedade”.

Outro caso interessante aconteceu na primeira Copa do Mundo, realizada no Uruguai em 1930. A seleção brasileira foi composta apenas por jogadores de um combinado de times cariocas, excluindo os paulistas, e a grande maioria dos atletas era de origem branca.

Na Copa de 1938, na França, nossa seleção chegou as semifinais contra a Itália e, nosso melhor jogador, Leônidas da Silva, de origem negra, “foi poupado” desse jogo para jogar a final. Resultado desta segregação: o Brasil perdeu o jogo para a Itália, com um pênalti cometido por Domingos da Guia. Domingos por ter cometido o pênalti levou a culpa pela eliminação da seleção brasileira.

A seleção de 1982, tida pela maioria da população brasileira e jornalistas esportivos como uma das melhores equipes já formadas, era constituída em grande parte por jogadores brancos, universitários e oriundos da classe média. Atletas negros ou mestiços estavam reduzidos a quatro: Luisinho, Toninho Cerezo, Júnior e Serginho. As críticas que surgiram em 1982 foram sobre eles.

Por fim, artigo do comentarista esportiva Juca Kfouri trata com maestria outra situação clara existente no nosso futebol: qual é o grande técnico negro da história do futebol brasileiro? Ao que se sabe, tivemos apenas dois em toda a história: Gentil Cardoso, em 1957, e Wanderley Luxemburgo, se é que ele se considera negro ou pardo, mais recentemente.

Kfouri pergunta: no país do futebol, onde a maioria dos atletas são negros, qual o dirigente importante do futebol brasileiro que é negro? Não tem nem um. O lugar é dos brancos. Negro é muito bom no gramado, mas no banco dirigindo o time ou na sala da presidência da confederação ou do clube, não tem lugar para ele. (Pesquisa: Nilo Dias)

Barbosa, por ser negro foi considerado o maior culpado pela perda da Copa de 50, pelo Brasil. (Foto: Acervo do C.R. Vasco da Gama)