Boa parte de um vasto material recolhido em muitos anos de pesquisas está disponível nesta página para todos os que se interessam em conhecer o futebol e outros esportes a fundo.

quarta-feira, 28 de março de 2012

Vicente Rao, primeiro e único

Alguns cronistas esportivos do centro do país insistem em dizer que a “Charanga RubroNegra”, do Jayme de Almeida, foi a primeira torcida organizada do futebol brasileiro. Não é verdade. Como também não é verdade que o Vasco da Gama tenha sido o primeiro clube a admitir negros em sua equipe. O pioneiro foi o Guarany F.C., de Bagé, que em 1920 tinha um time formado na maioria por uruguaios e negros.

O Vasco não foi pioneiro nem mesmo no Rio de Janeiro. O primeiro negro a jogar em um clube carioca foi Francisco Carregal, pelo Bangu, em 1905. Em 1914 havia um negro no Fluminense, Carlos Alberto, que usava talco na pele para parecer branco. O Vasco só em 1923 utilizou atletas negros, quando foi campeão carioca pela primeira vez.

Com relação a torcidas organizadas, dizer que a “Charanga Rubro-Negra”, criada por Jayme de Almeida em 11 de outubro de 1940 é a pioneira no futebol brasileiro, é prova de desconhecimento da história.

No mesmo ano, mas meses antes, foi fundado no Rio Grande do Sul o “Departamento de Cooperação e Propaganda do Internaconal”, (hoje “Camisa 12”) do qual foi chefe durante seis anos, coincidindo com o hexacampeonato gaúcho conquistado pelo clube. Na época, o time era formado na maioria por negros e pobres desassistidos, em contraste com o tradicional adversário elitista.

O DCP e Vicente Rao também foram pioneiros no uso de buzinas, faixas, serpentinas e foguetes entre as torcidas de futebol do país, fazendo a síntese entre o esporte e a alegria carnavalesca. Depois de algum tempo os rivais também aderiram a moda, o que inspirou Vicente Rao a preparar um contra-ataque.

Num clássico Gre-Nal disputado no velho Estádio da Timbaúva, que pertencia ao G.E. Força e Luz, Rao esperou que os gremistas levantassem a primeira faixa para erguer a sua, onde se lia em letras garrafais a frase provocativa e zombeteira: “Imitando os negrinhos, heim?”

Vicente Lomando Rao só podia mesmo ser colorado, pois nasceu no dia 4 de abril de 1908, data de aniversário do seu time de coração. Costumava dizer que não havia nascido: foi inaugurado. Filho do calabrês Michelangelo Rao, aos seis anos viajou com a família para a Itália e só pôde retornar ao Brasil (e a Porto Alegre) após o final da primeira guerra mundial, em 1918. Aos 11 anos matriculou-se no Ginásio Nacional (hoje Colégio Anchieta), onde teve que reaprender a falar português.

Trabalhou como aprendiz numa relojoaria, tornou-se sargento do Exército e acabou fazendo carreira como bancário, no Banco Nacional do Comércio. Sua atividade como carnavalesco começou em 1931, quando criou o bloco “Banda Filarmônica do Faxinal”. No mesmo ano, entrou de sócio do Sport Club Internacional e passou a jogar futebol no seu time principal, chegando a marcar um gol, de cabeça, numa partida contra o São Paulo, de Rio Grande, em que o Inter ganhou por 4 X 1.

No entanto, magro e com pouca resistência física, Vicente Rao logo foi dispensado do clube e abandonou a carreira de futebolista. Em 1936, no dia em que comemorou 28 anos, decidiu parar de beber e fumar, decisão que cumpriu pelo resto de sua vida.

A partir de 1947, Vicente Rao passou a trabalhar, sempre sem remuneração nas escolinhas de futebol do Inter, chegando a ter mais de 3 mil jovens cadastrados nas categorias infantil e juvenil, e inovando na conjugação entre esporte e estudo: os garotos só poderiam permanecer no clube se, paralelamente, apresentassem bom desempenho escolar.

Conheceu a primeira grande safra de craques do Internacional, o famoso “Rolo Compressor”, ainda no tempo dos Eucaliptos: Ivo – Alfeu – Nena – Abgail – Ávila – Villalba – Tesourinha – Viana – Adãozinho e Carlitos.

A denominação “Rolo Compressor” foi criada por ele, que desenhava charges para os jornais, até que o nome pegou. Certa vez, encontrou uma cabrita que pastava no terreno de um certo Lothar, e pediu-a emprestada. Batizou-a de “Chica”. A partir daí transformou-se na mascote do time, e freqüentava sempre as arquibancadas do velho estádio. Rao dizia que ela era o símbolo da sorte e da força do time.

Como o futebol sempre se prestou para superstições, até os adversários começaram a acreditar que a cabrita realmente dava sorte ao Internacional. Prova disso, é que no Gre-Nal decisivo do Campeonato Citadino de 1943, disputado no Fortim da Baixada, o primeiro estádio do Grêmio, Vicente Rao tentou entrar no campo gremista acompanhado de “Chica”. Os “azuis” acharam por bem impedi-la de entrar.

Sem se dar por vencido, Rao, com o auxilio de outros torcedores, arrancou algumas tábuas da arquibancada e colocou a cabrita para dentro do estádio, para desespero dos gremistas, quando viram “Chica”, feliz da vida, no meio da torcida. Reza a lenda que, no fim do disputado jogo, brilhou a estrela do "talismã" colorado, quando, na cobrança de falta de Rui, a bola que ia certa para a linha de fundo, desviou até cair na forquilha esquerda do gol do assombrado Júlio, que viu o Grêmio perder mais um título. No fim, “Chica” foi carregada nos ombros dos torcedores da Baixada até os Eucaliptos.

Vicente Rao morreu em setembro de 1973, aos 62 anos de idade, mas seu nome ficou eternizado por ter sido o “Rei Momo” mais brilhante e divertido de todos os carnavais da capital gaúcha. O seu reinado durou longos 22 anos, de 1950 a 1972.

Os que o conheceram, dizem que era um homem bondoso e ingênuo, dono de uma alegria e um enorme magnetismo pessoal. Chamado de "O Primeiro e Único", ele comandava o bloco "Tira o Dedo do Pudim", certamente o mais engraçado de todos. Depois de Rao vieram “Miudinho”, “Queixinho”, Otávio Frota Júnior e o atual Fábio Verçoza.

Semanas antes do Carnaval, Vicente Rao costumava escrever "comunicados" no estilo dos comandos militares. Claro, era pura galhofa. O extinto jornal "Folha da Tarde" os publicava sempre com destaque, e com a assinatura "Vi-100-T Rao". O seu bloco sempre aparecia cantando assim:

Ó meu amor
Não faz assim
Eu sou o bloco
Tira o Dedo do Pudim!

O bloco “Tira o Dedo do Pudim” foi criado em 1947 e constituiu-se durante três anos em grande sucesso no Carnaval de Porto Alegre. Até que, em 1949, um dos integrantes chegou bêbado para o ensaio, contrariando as orientações de Rao, que insistia no tema da "diversão saudável". Contrariado, o próprio Rao dissolveu o bloco que havia criado.

No ano seguinte, Rao investiu todas as suas economias numa fantasia luxuosa para o Carnaval que marcava a metade do século. A fantasia, o bom humor de Rao, sua popularidade em Porto Alegre e sua figura roliça, pesando cerca de 100 quilos, bem diferente do atleta magro que havia sido dispensado pelo time do Inter no início da década de 1930, fizeram com que ele fosse eleito “Rei Momo” da capital gaúcha, cargo que exerceu por 22 anos seguidos.

No natal de 1957, em festa promovida pela prefeitura de Porto Alegre, Rao desceu de helicóptero no meio do Parque da Redenção, fantasiado de Papai Noel. A partir daí, passou a ser também o Papai Noel oficial da cidade.

Em 1956, Rao foi eleito presidente da Federação dos Bancários do Rio Grande do Sul, passando a ser conhecido também como líder sindical. Em função disso, logo após o Golpe Militar de 1964 sua casa foi cercada pela polícia e pelo Exército. Rao foi preso e enquadrado na Lei de Segurança Nacional, acusado de fazer política partidária no sindicato. Foi posto em liberdade 24 horas depois, por falta de provas, mas continuou sendo processado até 1970, quando finalmente foi absolvido de todas as acusações.

Em dezembro de 1973, pouco mais de um ano após a sua morte, uma rua de Porto Alegre, no bairro Ipanema, recebeu em sua homenagem o nome de rua Vicente Rao. Na placa de identificação do logradouro, o título que o identifica não é o de bancário, nem “Rei Momo”, Papai Noel ou líder da torcida colorada, mas "alegria do povo".

A figura do “Rei Momo” como o monarca do Carnaval surgiu em 1937, por iniciativa do extinto jornal "A Noite", que criou um boneco de papelão com a forma de um homem obeso e bonachão, inspirado na figura olímpica do “Momo” dos rituais pagãos da Grécia antiga. Era a figura típica do fanfarrão, que não trabalhava e tirava onda de quem pegava no batente. O boneco virou símbolo dos desfiles carnavalescos, até que virou gente.

Em Porto Alegre, lá pela década de 30, ele era apresentado como um sujeito que mal cabia num fraque, e cercado de ajudantes. Anos depois, surgiriam os reis momos Lelé e Macalé, que animavam festas pelos bairros da cidade.

O S.C. Internacional não esqueceu um dos seus maiores símbolos e Vicente Rao virou nome do museu do clube, que foi fundado em 1994. Até pouco tempo atrás, ele se reduzia a uns poucos adereços guardados em caixas de papelão, numa sala do ginásio Gigantinho. Em novembro de 2005, a diretoria colorada finalmente fez um projeto de revitalização do antigo museu, que foi reinaugurado em 2006.

O Museu Vicente Rao está localizado na avenida Padre Cacique 891, no bairro Menino Deus, junto à Biblioteca Zeferino Brasil, no Ginásio Gigantinho. O Museu encontra-se atualmente fechado aguardando a reforma do novo espaço que está sendo construído no andar de cima da Loja Inter Sport.

O museu conta a história do primeiro Rei Momno oficial de Porto Alegre, Vicente Rao, e relembra seus 22 anos de reinado. Do acervo do museu constam fantasias, adereços e cerca de 1.800 fotos e correspondências, entre outros objetos do arquivo pessoal de Vicente Rao, que criou, no S.C. Internacional, a primeira escolinha de futebol, assim como a primeira torcida organizada do Brasil, denominada "Camisa 12". (Pesquisa: Nilo Dias)