Boa parte de um vasto material recolhido em muitos anos de pesquisas está disponível nesta página para todos os que se interessam em conhecer o futebol e outros esportes a fundo.

domingo, 15 de abril de 2018

As “Mocinhas de Araguari” fizeram história

Estávamos na cidade de Araguari (M), no Triângulo Mineiro, distante 670 quilômetros de Belo Horizonte, no ano de 1958. O Grupo Escolar Visconde de Ouro Preto, uma escola municipal da cidade vivia uma situação de dificuldades, com inúmeras contas atrasadas e sem condições de pagá-las.

Foi quando a diretora, dona Isolina, teve uma idéia brilhante, na verdade pouco comum, realizar um jogo de futebol com a renda direcionada para a escola.

A ideia inicial da diretora era que o time masculino do Araguari Atlético Clube fizesse uma partida beneficente em favor da escola. Foi quando o diretor do clube atleticano, Ney Montes deu uma sugestão original: promover uma partida apenas entre garotas, o que certamente chamaria mais a atenção.

Divididas em duas equipes, o Araguari e o Fluminense, as jovens entrariam em campo com a missão de salvar a escola. No ano em que o Brasil conquistava sua primeira Copa do Mundo, garotas de classe média da pacata cidade mineira guardaram os sapatos e os vestidos bem comportados. Partiram para as camisetas, chuteiras e calções.

Da ideia a ação. A diretora não perdeu tempo e pediu para quem quisesse colaborar, que não se fizesse de rogada. E 40 voluntárias atenderam o chamamento.

No dia do jogo o estádio da cidade lotou. Até da vizinha Uberlândia veio gente, torcedores curiosos para ver as meninas jogando futebol, coisa antes nunca pensada por lá.

O entusiasmo foi tão grande que a torcida ficou exaltada, o que obrigou a presença da Cavalaria para acalmar os ânimos.

Até a famosa revista “O Cruzeiro”, a mais lida no país se interessou pelo assunto. Tanto é verdade que dedicou uma reportagem de página inteira, para o que classificou como “As mocinhas de Araguari”.

Não só conseguiram salvar o caixa escolar, mas também movimentar as rodas de conversa da região. O estádio lotava durante as partidas. A notícia voou até a vizinha Uberlândia, que logo convidou o time para um jogo.

Principal revista do país naquela época, O Cruzeiro foi conhecer as primeiras mulheres do futebol brasileiro, publicou reportagem e deu projeção nacional às “mocinhas” de Araguari.

“’Glamour usa chuteiras’”, estampou a revista. Viraram celebridades. Chegaram a desfilar em carro de bombeiros em Salvador e Belo Horizonte.

Em Minas, o time levou mais gente ao estádio do que o Botafogo de Garrincha, no mesmo dia em que o “anjo das pernas tortas” e um garoto de 17 anos chamado Pelé assombraram o mundo.

Na capital mineira até vestiram a camisa do Atlético Mineiro, em um jogo amistoso realizado em 1959. Foram até convidadas a jogar no México, país que naquela época já tinha time feminino de futebol.

A jornalista e pesquisadora Tereza Cristina Montes Cunha, filha do organizador do time Ney Montes, foi quem resgatou a história do time de Araguari.

Ela conta que a alegria das partidas perdeu espaço para a tristeza quando as garotas foram proibidas de jogar. O sucesso fez os incomodados tirarem do baú um decreto-lei da década de 1940, que proibia mulheres de praticarem modalidades esportivas “incompatíveis” com o seu físico – o futebol era citado como uma delas.

O time feminino não durou dez meses. Ainda recebeu pressão da Igreja Católica, também contrária ao envolvimento de mulheres com a prática desportiva. O decreto instituído na ditadura de Getúlio Vargas só caiu na reta final da ditadura seguinte, em 1979.

Com o sonho vindo por água abaixo, só restava as meninas continuarem a pratica do futebol dentro da escola. Mas nem isso foi possível, já que os pais aderiram a proibição.

De qualquer maneira vale o registro, pois meio século antes de Marta conquistar o planeta com seu talento, um time de 25 pioneiras deu um drible na obscura lei brasileira que proibia as mulheres de praticarem futebol e outras modalidades de contato físico e marcou um golaço contra o preconceito.

O tempo passou e longos quase 60 anos nos separam da juventude daquelas jogadoras pioneiras. Muitas já nem estão mais entre nós. Mas no geral as sobreviventes lembram com  saudade da época em que eram craques em fazer história. Para matar a saudade, em 2009 fizeram um encontro com direito a pelada.

No Brasil, a primeira partida de futebol entre moças uniformizadas de que se tem notícia ocorreu no ano de 1913, entre os times de Tremembé e Cantareira (atual bairro de Santana), na Zona Norte paulistana.

Mas Tereza explica que o diferencial do time de Araguari é que tinha o caráter de apresentação, com toda a estrutura de uma partida oficial de futebol. Estava ligado à Federação Mineira de Futebol.

Por isso, considera-se que o Araguari é o pioneiro no futebol feminino. O clube só não foi criado formalmente por causa do decreto-lei de Vargas.

“Elas tinham um grande sonho, de serem jogadoras oficiais. Infelizmente foram proibidas. A maioria seguiu jogando outros esportes, como o vôlei e o handebol”, afirma a pesquisadora. (Pesquisa: Nilo Dias)

“As mocinhas de Araguari, entrando em campo num jogo em Uberlândia, com o estádio completamente lotado.