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domingo, 13 de outubro de 2019

Um argentino na Seleção Brasileira

Que a rivalidade entre Brasil X Argentina no futebol é enorme, ninguém tem dúvidas. Mas será que um jogador nascido na Argentina teria alguma chance de um dia vestir a camisa da "Seleção Brasileira"? E vice-versa? Ou essa história é apenas mais uma das inúmeras lendas do futebol? Mas isso já aconteceu.

Em 1942, em meio à Segunda Guerra Mundial, um atacante argentino chamado Adolpho Milman, conhecido por aqui como “Russo”, que desenvolveu quase toda a sua carreira de futebolista no Fluminense, defendeu a ""Seleção Brasileira".

É verdade que a sua passagem pela Seleção foi meteórica, apenas um jogo, pelo "Campeonato Sul-Americano" daquele ano, vitória de 2 X 1 sobre o Peru. Mas bastou para acender uma discussão que que persiste até hoje.

O xis da questão é descobrir exatamente onde o ex-atacante nasceu. Sabe-se que sua família era natural da região onde hoje fica o Afeganistão, então dominada pelo Império Russo, migrou para a província de Entre Ríos, na Argentina, e depois se estabeleceu no Rio Grande do Sul.

Ao longo da história, esses três lugares já foram apontados como berço do ex-jogador. Enquanto ele atuava profissionalmente, a história que circulava entre os torcedores era de que “Russo” havia nascido na Rússia/Afeganistão e vindo para o Brasil ainda quando bebê. Os jornais da época diziam que ele era de Pelotas.

No entanto, a família de “Russo” tem essa outra versão para a nacionalidade do antigo centroavante. De acordo com seu filho, Fernando Milman, ele era mesmo um imigrante argentino, nascido na província de Entre Rios, em 26 de julho de 1915, filho de Salomão e Clara, um casal de ucranianos.

O escritor pelotense Lourenço Cazarré, afirma que ele nasceu, sim, no exterior, mas bem mais perto daqui. Citando Jane Gershenson, sobrinha do craque, Lourenço diz:

"Salomão e Clara casaram-se em Buenos Aires, mas logo partiram para viver na província argentina de Entre Ríos. Lá vieram à luz seus três primeiros filhos: Joana, Adolfo e Bertha. Tempos depois, se transferiram para Pelotas, onde nasceram os outros cinco: Moisés, Isaac, Milton, Rosa e Ada".

Então, de acordo com sua sobrinha, “Russo” teria nascido na Argentina, na província de Entre Ríos, próxima ao Uruguai e ao Rio Grande do Sul. Nesta província, há uma "Plaza Milman", situada no pequeno município de Ubajay - seria uma homenagem à família?

As dúvidas acerca de suas origens acabaram alimentadas pelo próprio atleta, que recusava-se até mesmo com os filhos a falar muito do seu passado.

Caso essa realmente seja a versão verdadeira da história, o ex-atacante do Fluminense é um dos cinco jogadores de toda história nascidos no exterior que defenderam em algum momento a "Seleção Brasileira".

Além dele, apenas o britânico Sidney Pullen, o português Casemiro do Amaral e o italiano Fracisco Police, todos no começo do século passado, além do meia belga Andreas Pereira, ainda em atividade e hoje no Manchester United, alcançaram esse feito.

A história de Adolpho Milman é muito semelhante à do seu oposto perfeito, Aarón Wergifker, o único brasileiro que jogou pela Argentina. O ex-zagueiro do River Plate também era de família russa e nasceu no Brasil em uma parada da viagem dos seus pais rumo ao país vizinho.

"Russo" foi criado em Pelotas, onde passou a infância e adolescência. Seu pai era dono de uma pequena fabrica de japonas e casacos, chamada “Londres”. Iniciou sua carreira juvenil no Esporte Clube Pelotas, tendo participado de jogos do clube no Campeonato Gaúcho de 1933. 

Depois disso “Russo” dedicou praticamente toda sua carreira ao Fluminense. Ele chegou ao clube quando tinha 18 anos, em 1933, e se aposentou 11 anos depois. Com exceção de uma passagem de alguns meses pela França (Cercle Paris), só vestiu a camisa tricolor.

“Russo” foi um dos grandes artilheiros da história do Fluminense, tendo feito 154 gols em 249 jogos, entre 1933 e 1944, sendo um dos destaques do famoso "Fla-Flu da Lagoa", na final do “Campeonato Carioca” de 1941.

Participou das conquistas dos Campeonatos de 1936, 1937, 1940 e 1941, além do "Torneio Aberto" de 1935 e do "Torneio Extra" de 1941.

"Russo" estreou pelo Fluminense em 1933, e formou linhas de ataque lendárias, ao lado de Pedro Amorim, Carreiro, Sobral, Rongo, Romeu Pellicciari, Tim e Hércules.

Sofreu uma grave contusão em 1938, não tendo disputado nenhuma partida pelo Tricolor neste ano, tendo ido para Paris, a fim de se recuperar e onde chegou a jogar por um pequeno clube local, o Cercle Athlétique, retornando para o Fluminense em 1940, a tempo de se sagrar campeão carioca, e conseguindo recuperar a antiga forma.

"Russo" é especialmente lembrado por duas atuações espetaculares: em 1941, anotou cinco gols contra o Bangu; em 1943, fez três contra o Botafogo.

Até pouco tempo, era o segundo maior artilheiro do Fluminense em Fla-Flus com 13 gols, perdendo neste quesito apenas para Hércules, autor de 15 gols nas décadas de 30 e 40 do Século XX.

“Russo” era tido como jogador de rara inteligência, tendo, entre seus fãs, ninguém menos do que seu companheiro de clube, Tim, que quando se tornou treinador, foi um dos maiores estrategistas da história do futebol brasileiro, mestre de toda uma geração de técnicos.

o "Campeonato Carioca" de 1941, fez parte do ataque que fez 106 gols, um feito jamais igualado neste torneio, tendo como companheiros o argentino Rongo, Romeu Pellicciari, Tim e Hércules.

Contava Tim que, no dia do "Clássico Vovô" de 4 de setembro de 1943, no "Estádio de Laranjeiras", o então técnico do Fluminense, o uruguaio Ondino Viera, no momento da distribuição de camisas e tarefas aos jogadores, pediu a “Russo” que marcasse o jogador Santamaría, um argentino que jogava no Botafogo, o que ele recusou, devolvendo a camisa ao técnico.

Interpelado por Ondino Viera,”Russo” explicou que sua posição em campo e suas características não lhe permitiriam executar bem a função, recomendando que o treinador escalasse Carlos Brant, que era volante e ainda sabia atacar.

Vencido pelo argumento de ”Russo”, Ondino preferiu deixá-lo entrar em campo e jogar como acreditava que seria o melhor para ele e para o tricolor. Resultado: o Fluminense ganhou do Botafogo por 5 X 3 e Russo marcou três gols.

Depois da aposentadoria, foi técnico do América em 1949, conquistando o "Torneio Início" do "Campeonato Carioca" daquele ano, assim como foi técnico interino do Fluminense durante o "Torneio Rio-São Paulo" de 1955, com uma derrota para o Santos no "Estádio da Vila Belmiro" por 2 X 1 e uma vitória no Fla-Flu por 3 X 1.

Amigo de João Saldanha foi supervisor da "Seleção Brasileira" antes da “Copa do Mundo” de 1970. Ele morreu em 22 de fevereiro de 1980, aos 65 anos, no Rio de Janeiro, vítima de um câncer causado pelo hábito de fumar. Em seu obituário no “Jornal do Brasil”, Sandro Moreyra escreveu que ele era gaúcho, de Pelotas.

Em 1982, dois anos após a morte de “Russo”, a revista “Placar” elegeu uma seleção histórica do Fluminense, e ele foi um dos onze escolhidos.

Em 2006, teve lançada uma biografia escrita pelo jornalista paranaense Carlos Alberto Pessôa, intitulada "O Sábio de Chuteiras", pela editora "Travessa dos Editores", que eu tenho na minha biblioteca.