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sexta-feira, 2 de dezembro de 2016

Heleno, o craque que morreu louco

Indiscutivelmente Heleno de Freitas foi um dos melhores jogadores que o futebol brasileiro conheceu em todos os tempos. Era mineiro de São João Nepomuceno, onde nasceu a 12 de fevereiro de 1920. Morreu em Barbacena, também em Minas Gerias, no dia 8 de novembro de 1959, com apenas 39 anos de idade.

Heleno estudou no Colégio São Bento e depois obteve o bacharelado em Ciências Jurídicas e Sociais pela Faculdade de Direito do Rio de Janeiro, atual Faculdade Nacional de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

Era considerado membro da alta sociedade, com amigos empresários, juristas e diplomatas. Seu pai era dono de um cafezal e ainda cuidava de negócios de papel e chapéus.

Sua vida foi marcada por vícios em drogas como lança-perfume e éter. Isto o fez tentar se auto-eletrocutar num treino do Botafogo. Boêmio, era frequentador de diversas boates do Rio de Janeiro.

Heleno foi casado com Ilma, que conhecia muito bem os problemas do jogador com drogas e mulheres. E mesmo assim disse que o aceitaria como era. Com ela teve um filho apenas, Luiz Eduardo.
Não aguentando mais o temperamento de Heleno de Freitas, ela fugiu para Petrópolis em 1952.

Depois casou com o melhor amigo dele, à quem Heleno pedira que cuidasse dela, enquanto ele jogava no Boca Juniors, da Argentina. Seu amigo acabou se apaixonando por Ilma. Luiz Eduardo — por ter perdido contato desde a mudança — só teve notícias sobre o pai com 10 anos de idade, justamente sobre seu falecimento.

Além de jogador de futebol era advogado, catimbeiro, boa vida, irritadiço e metido a galã. Tinha uma boa aparência, mas quase intratável, em razão de seu gênio destemperado. Por causa disso muitas vezes era expulso de campo.

Teve muitos inimigos. Seus companheiros do “Clube dos Cafajestes” e a torcida do Fluminense o apelidaram de “Gilda”, por seu temperamento e por este ser o nome de uma personagem da atriz norte-americana Rita Hayworth em filme de mesmo nome.

Era Heleno reclamar de qualquer coisa para o povo começar a gritar “Gilda, Gilda!”, o que enfurecia o pobre Heleno cada vez mais. Aí, ele perdia a razão. Xingava quem estivesse pela frente.

Um domingo, jogando em General Severiano, a social do Botafogo, que supostamente deveria apoiar o time, começou a chamar Heleno de “Gilda”, que levando o dedo a boca pediu silêncio aos sócios. A reação foi terrível. A social não parou mais de chamar o maior ídolo do Botafogo, naquela época, de Gilda.

Era Heleno pegar na bola e lá vinha o coro de “Gilda, Gilda”.
Calmamente, ele veio caminhando em direção à social - é preciso dizer que a social dos clubes naqueles anos 30 e 40, era o único lugar nos estádios frequentados por senhoras acompanhando seus maridos -, se postou bem em frente, fez como se fosse agradecer e, repentinamente abaixou o calção.

Foi terrível. Foi só a partir desse episódio que os jogadores foram obrigados a usar uma espécie de sunga elástica por baixo do calção.
O escândalo foi tamanho que o Botafogo se viu na obrigação de vender Heleno para o Boca Juniors, da Argentina.

O craque foi o símbolo de um Botafogo guerreiro, que nunca se dava por vencido. Descoberto por Neném Prancha no time do Botafogo de praia, Heleno chegou ao onze principal em 1937, com a responsabilidade de substituir o ídolo Carvalho Leite, goleador do tetracampeonato estadual, de 1932 a 35 e não decepcionou a torcida, com grande habilidade e excelente cabeceio.

Dono de uma postura elegante dentro e fora de campo, o jogador de cerca de 1,82 metros de altura foi o maior ídolo alvinegro antes de Garrincha, mesmo sem nunca ter sido campeão pelo clube.

Heleno andava ao volante de um Cadillac branco, rabo de peixe, conversível.  Advogado formado, anel no dedo médio da mão direita. Era venerado pelas mulheres e invejado pelos homens. Mas - era obrigatório ter um “mas” -, quando calçava as chuteiras, se transformava.

Jogava muito. Diziam que ele tinha sido o maior camisa 9 de todos os tempos - só que perdia a razão com a maior facilidade. Se irritava tanto com os adversários quanto com seus companheiros.

Marcou sua passagem pelo Botafogo com 204 gols em 233 partidas, tornando-se o quarto maior artilheiro da história do clube. Deixou General Severiano em 1948, quando foi vendido ao Boca Juniors, da Argentina, na maior transação do futebol brasileiro até então.

Jogou ainda no Vasco da Gama, conquistando seu único título por clube, o de campeão carioca de 1949 com o memorável “Expresso da Vitória”, pelo Atlético Junior de Barranquilla, da Liga Pirata da Colômbia, pelo Santos e pelo América, onde encerrou a carreira.

No clube americano jogou apenas uma vez. Foi no Maracanã, tendo sido expulso aos 35 minutos do primeiro tempo, depois de acertar um carrinho violento em um zagueiro adversário.

Ainda tentou voltar aos gramados defendendo o Flamengo, por indicação do técnico “Kanela”, mas se desentendeu com os jogadores num treino e não foi aceito.


Em maio de 1953, jogou a sua última partida antes da internação. Com a camisa vermelha e branca do Rochedo de Minas, da cidade de mesmo nome, enfrentou um combinado de Guarani. Heleno foi o centroavante. Não ria para ninguém, era grande e glamuroso. Num lance, matou a bola no peito e fuzilou o canto do goleiro. No outro, chutou de fora da área, marcando outro golaço.

Fez 18 partidas pela Seleção Brasileira marcando 19 gols, tendo sido artilheiro do Campeonato Sul-Americano de Futebol de 1945 - atual Copa América - com 6 gols.

Heleno sonhava em disputar uma Copa do Mundo, mas devido à 2.ª Guerra Mundial, no auge da sua carreira, o Mundial foi cancelado em duas ocasiões, 1942 e 1946.

Heleno foi um dos personagens favoritos de escritores e jornalistas. Na lista de fãs, se destaca o escritor colombiano Gabriel García Márquez, autor do clássico “Cem Anos de Solidão” e vencedor do prêmio Nobel de Literatura em 1983.

O colombiano era jornalista do periódico “El Heraldo” quando Heleno foi contratado pelo Atlético de Barranquilla, em 1950. Na coletânea “Obra jornalística - Vol. 1 - Textos caribenhos”, da Editora Record, em 2006, foram selecionados dois textos do escritor sobre o jogador brasileiro: “O doutor De Freitas” e “Heleno de ponta a ponta”.

Gabriel Garcia Marques escreveu que “em nenhum caso uma partida da qual participe Heleno tem probabilidade de se transformar num logro, porque vaiar, da mesma maneira como aplaudir, é uma forma coletiva de reconhecer publicamente um fato”.

E ainda: “Heleno de Freitas tinha pinta de cigano, cara de Rodolfo Valentino e humor de cão raivoso. Nas canchas, resplandecia. Uma noite, perdeu todo o seu dinheiro no cassino. Outra noite perdeu não se sabe onde, toda a vontade de viver. E na última noite morreu, delirando, num hospício”.

O escritor uruguaio Eduardo Galeano contou: “Heleno foi visitar um amigo doente. E então aconteceu o seguinte: todas as mulheres da casa, da avó à lavadeira, apaixonaram-se por ele.”

O grande jornalista e dramaturgo brasileiro, Nelson Rodrigues, assim, descreveu o ex-jogador: “Heleno de Freitas, o craque das mais belas expressões corporais que conheci nos estádios, morreu, sem gestos, de paralisia progressiva e descansa, hoje, no cemitério de São João Nepomuceno, onde nasceu um dia para jogar a própria vida num match sem intervalo entre a glória e a desgraça.”

O jornalista Amando Nogueira foi taxativo: “Por ser um jogador boa pinta, elegante, de classe alta e boêmio, envolveu-se com várias mulheres e por causa disso contraiu sífilis, que o deixou louco.”

E por fim, Roberto Drumond, escritor e ex-colunista do Estado de Minas: “O grande Heleno de Freitas, o deus das cabeçadas, que deslumbrou plateias do mundo, envergando, entre outras, as gloriosas jaquetas do Botafogo e do Boca Juniors. (...). Aquele que aqui na terra foi um Deus, que multiplicou gols como se gols fossem peixes.”

Em Minas Gerais, a ficção "Quando fui morto em Cuba", de Roberto Drummond, criou um romance hipotético entre Heleno e Rita Hayworth, que viveu “Gilda”, nos cinemas. Durante a carreira o jogador era chamado de "Gilda", pelos rivais, por ser genioso como a personagem vivida por Hayworth.

Segundo o ex-goleiro Danton, Heleno, já internado em um sanatório, assistia acompanhado de um médico os jogos do Olympic de Barbacena e, dentre seus delírios megalomaníacos, contava que teve casos amorosos com várias mulheres bonitas, incluindo um nunca comprovado com Eva Perón no período em que jogou na Argentina.

Veio a falecer no ano de 1959, em um hospício de Barbacena, onde foi internado seis anos antes, em 1953, com apoio da família.

Sua vida é retratada no livro “Nunca houve um homem como Heleno”, do jornalista e escritor Marcos Eduardo Neves, e no filme “Heleno”, estrelado por Rodrigo Santoro, que fez o papel título e Aline Moraes, que fez sua esposa, cujo nome foi mudado para Sílvia.

Títulos conquistados. Pela Seleção Brasileira: Copa Roca (1945) e Copa Rio Branco (1947); Botafogo: Torneio Inicio (1947). Campeonato Carioca de Aspirantes (1944 e 1945). Campeonato Carioca de Amadores (1943 e 1944). Copa Burgos, na Espanha (1941). Taça Prefeito Dr. Durval Neves da Rocha (1942); Vasco da Gama: Campeão Carioca (1949). Campeão Carioca de Aspirantes (1949); Santos: Taça Santos (1952). Torneio FPF (1952). Quadrangular de Belo Horizonte (1951).

Artilharia. Copa América (1945). Botafogo: Campeonato Carioca (1942).

O médico José Theobaldo Tollendal foi quem descobriu, em exame na Casa de Saúde Santa Clara, em Belo Horizonte, a doença que mataria Heleno: paralisia geral progressiva (PPG).

Um mês depois, em 19 de dezembro de 1954, Heleno de Feitas deu entrada na Casa de Saúde São Sebastião, segundo documentos do prontuário 220, uma pasta com cerca de 120 cartas trocadas entre o médico e Heraldo de Freitas, irmão do ex-craque, que custeou as despesas.

Para a médica Lucinéia Carvalhaes, diretora clínica do Hospital Eduardo de Menezes, em Belo Horizonte, referência nacional em doenças infecciosas, “é possível que Heleno tenha contraído sífilis nos primeiros anos da vida sexual, pois era comum então ter as primeiras relações com prostitutas”.

Também conhecida por neurossífilis ou sífilis terciária, a PPG é uma manifestação tardia da doença. Não tem cura e o tratamento apenas impede o avanço, sem dar fim às sequelas. A sífilis é um mal silencioso. Na primeira fase, aparecem pequenas feridas, que somem em três semanas. Pouco tempo depois, a manifestação é uma alergia no corpo, que igualmente desaparece.

O paciente perde peso, apresenta fortes dores musculares e passa a caminhar com a base alargada, como se estivesse perdendo o equilíbrio. As principais manifestações psiquiátricas são mania de grandeza, discurso sem nexo e confusão entre fantasia e realidade – sintomas apresentados por Heleno.

Segundo a sobrinha do jogador, Helenize de Freitas, Heleno contava muitos casos já durante o período que morou em São João Nepomuceno, entre 1952 e 1954, antes de se internar em definitivo.

Ele contava que era amigo de Víctor Mature, ator de “Sansão e Dalila”. Como ele convivia com muitos artistas nos tempos de glória do Rio, não se sabia se era verdade. Só depois, mais tarde, que foi percebido que aquilo já era delírio de Heleno.

Sempre ao lado do médico, tomava refrigerante no Bar Colonial e buscava charutos na Tabacaria Minas Gerais, no Centro. Ele passava, pegava o fumo, dizia "Eu sou o Heleno" e saía sem pagar”, contam os irmãos Luiz Galvão e Sebastião Pereira, herdeiros da loja. 

Com mania de grandeza, falava coisas sem nexo. Os tempos de glória ainda o atormentavam. Dizia que a cada gol pelo Boca Juniors era obrigado a dar um abraço em Evita Perón, a primeira-dama argentina.

No fim de 1957, Tollendal escreveu a Heraldo: A saúde e a sanidade pioravam rapidamente. Ele havia perdido muito peso, os dentes estavam enfraquecidos e o cabelo caía. Havia passado a ouvir vozes, agir de forma violenta e infantil, comer papel e rasgar roupas com os dentes.

Pele enrugada, cabelos ralos e brancos, aos 38 anos, o homem de 1,80m pesava pouco mais de 40 kg. Na manhã de 8 de novembro de 1959, ao abrir a porta do quarto com o café da manhã, um enfermeiro encontrou Heleno morto.

A ida do corpo para São João Nepomuceno foi tão conturbada quando a vida do mito. Caía verdadeiro dilúvio. Às 15 horas, perto de Juiz de Fora, o caixão teve de ser trocado de carro, que meia hora depois atolou. Só chegou à cidade às 9h da manhã seguinte.

“No velório, um senhor de cerca de 50 anos ficou o tempo todo ao lado do caixão. Devia ser alguém que conviveu com o astro. Depois ninguém nunca mais o viu”, lembra Helenize.

O comércio fechou e uma fila seguiu o caixão da casa da família, na Rua Capitão Braz, até o cemitério São João Batista, onde Heleno foi enterrado às 15 horas, ao lado dos pais e de Heraldo.



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