Em
três cidades gaúchas foram criadas ligas de futebol exclusivas para negros: em
Porto Alegre a Liga Nacional de Futebol, pejorativamente chamada de Liga da
Canela Preta; em Pelotas, a Liga José do Patrocínio e em Rio Grande a Liga
Esportiva Rio Branco.
Mas
o que chama a atenção foi a existência de entidades voltadas somente para
indivíduos negros em Novo Hamburgo, município com população de origem alemã e
em Caxias do Sul, de descendência italiana.
O
Sport Club Cruzeiro do Sul foi fundado em 18 de outubro de 1922, por um grupo
de amigos que se reuniu ao ar livre, frente ao salão do senhor Alfredo
Quadros, no bairro África, atual bairro Guarani, em Novo Hamburgo, na época
distrito de São Leopoldo. O nome do clube, segundo se sabe, foi inspirado na noite
límpida de luar admirável, quando da reunião.
Os
desportistas fundadores do time de futebol, conforme consta em ata, foram João
Teles, Casiano Teles, Álvaro Pacheco, João de Deus, Valdemar Rodrigues,
Guilherme Paz, Adão Lozada e Alfredo de Quadros.
O
bairro do África era também o berço do Bloco Carnavalesco “Os Leões”, cujos
integrantes, na maioria negros, se integraram ao Sport Club Cruzeiro do Sul.
“Os Leões”, durante o Carnaval costumavam desfilar pela Avenida Pedro Adams
Filho. Não demorou para que as duas entidades se fundissem, para garantir um
melhor aproveitamento do espaço existente.
Foi
assim que surgiu a Associação Esportiva, Beneficente e Cultural Sociedade
Cruzeiro do Sul, que a partir de então passou a ser a responsável pela maioria
das atividades de cunho recreativo e social, organizadas pelos negros de Novo
Hamburgo e proximidades. A nova entidade passou a ter no estandarte a figura de
um leão, entrelaçado com a constelação do Cruzeiro do Sul.
Campeonatos
de futebol foram organizados e deles participavam negros vindos de outras
cidades, como Alegrete, Pelotas e Montenegro. Os jogos geralmente aconteciam em
terras da família Malaquias Oliveira, localizadas onde hoje fica o bairro
Rincão. Após os jogos as famílias negras iam se banhar em um arroio que corria
próximo ao campo de futebol.
Antes
da construção da sede, ocorrida nos anos 40, os integrantes da sociedade
costumavam organizar festividades voltadas às datas relevantes para a comunidade
negra local, como o “13 de Maio” e “7 de Setembro”, cuja mobilização revertia em bailes, almoços
e piqueniques comemorativos.
já
as atividades como bailes, casamentos, chás, almoços, entre outros eram
realizados em locais alugados pelos responsáveis pela associação, já que a
construção da sede do clube se tornaria realidade somente muitos anos mais
tarde, após uma soma de contínuos esforços por parte dos integrantes do clube
desde a sua fundação.
Depois
que a sede social foi erguida, nela se realizaram muitas festas, entre as quais
os bailes de debutantes, que contava com a participação de jovens que eram
apresentadas à sociedade, e também os da escolha da Rainha da Cruzeiro do Sul, das
24 Estrelas e das Rosas, sendo este uma noite de gala.
Nesses
encontros sociais vinham famílias de outras localidades, como São Sebastião do
Caí, São Leopoldo e Canoas, entre outras. A
sede da sociedade servia para as famílias negras de Novo Hamburgo e arredores comemorarem
casamentos, batizados e aniversários, realizarem almoços de confraternização e
ainda como espaço de discussão e de lazer.
O auge da Sociedade Cruzeiro do Sul ocorreu num período em que não era fácil a
convivência entre negros e brancos, em uma cidade predominantemente de origem
alemã, em que até os lugares no cinema local eram separados. No Guarani, tinha
platéia em baixo e em cima. Conta a história que um negro chamado Arnaldo, irmão
de Malaquias, dono das terras onde o time jogava, foi o primeiro a sentar na
platéia.
Tudo
isso ficou para trás. Hoje Novo Hamburgo comporta em sua história o papel
significativo de pessoas negras que participam ativamente da vida da cidade,
mostrando que em “terras germânicas”, negros atuam como sujeitos históricos
capazes de reivindicar, elaborar táticas, demarcar espaços e concretizar
sonhos.
A Sociedade Sport Club Cruzeiro do Sul existe até hoje, mas apenas como uma entidade carnavalesca, a mais antiga de Novo Hamburgo. Foi campeã do Carnaval da cidade nos anos de 1999, 2003, 2004, 2005, 2011, 2012 e 2014. Em Estância Velha ganhou o concurso em 2009.
Em
Caxias do Sul existiu o Clube Gaúcho, nascido num tempo em que os negros eram
proibidos de frequentar qualquer entidade social da cidade. Os porteiros não os
deixavam entrar, só brancos. E isso acontecia desde décadas anteriores.
O
racismo era tão latente, que um jornal da cidade, o “5 de Abril”, em sua edição
de 6 de março de 1936, publicou uma nota em que os individuos negros pleiteavam
espaços próprios nos cinemas, onde também não lhes era permitida a entrada.
Toda
essa situação motivou a população negra a fundar um clube social e esportivo.
Foi assim que nasceu o Sport Club Gaúcho, no dia 23 de junho de 1934. O
primeiro Estatuto já dizia que o clube destinava-se ao desenvolvimento físico
de seus associados por meio do futebol e outros esportes, podendo ainda
realizar em sua sede quermesses, bailes e outras diversões.
A
primeira Diretoria foi constituída por Paulino Dias Belíssimo, João Moreira dos
Santos, José Alves de Oliveira, Miguel Coelho, Theodoro Rosa, Jovino Antunes
Pereira, Laudemiro Martins, Marcelino Martins, Luiz Raimundo da Silva e Antonio
José dos Santos. Durante seus primeiros anos de existência, o Clube Gaúcho
manteve duas diretorias: uma masculina e outra feminina.
O
Gaúcho não foi a única associação negra da cidade, na época. Sabe-se da
existência de outros clubes exclusivos para negros, como o “Eurico Lara”, “XV
de Novembro” e “Margaridas”. Esse último, fundado em 1933 e provavelmente incorporado
ao Clube Gaúcho.
A
respeito dos outros clubes, “Eurico Lara” e “XV de Novembro”, as informações
são poucas e não se sabe nem mesmo as datas de suas fundações.
O
“Clube das Margaridas” era uma associação de “mulheres de cor”. Nenhuma
documentação sobre a entidade foi encontrada. O pouco que se sabe sobre ela, provém
de depoimentos. Acredita-se que “As Margaridas” tenha sido incorporada ao
Gaúcho, porque uma de suas prováveis fundadoras, Regina Machado, em seguida
apareceu como sócia do Clube Gaúcho.
O
Clube Gaúcho tinha o seu time de futebol, mas não existem indícios de que em
Caxias do Sul tenha sido formada uma liga especial para os times formados por
negros. O clube participava de campeonatos varzeanos na cidade e ainda organizava
campeonatos. Poucos títulos conquistou.
O
jornal “O Bandeirante”, publicou em sua edição de 26 de outubro de 1935, uma
nota em que se referia a um torneio “promovido pelo S. C. Gaúcho, que deverá
realizar-se amanhã (27/10/1935), com a participação de “vários quadros locais”.
Em
1944, o Gaúcho promoveu o “Torneio Relâmpago”, patrocinado pela Liga de Defesa
Nacional (LDN), com a participação dos seguintes times de várzea: Az de Ouro,
Tupy, Americano, Internacional, Juvenil, Vera Cruz, Aimoré, Pombal, Botafogo,
Vitória e o próprio Gaúcho. O clube ainda participou de vários campeonatos na
cidade, muitos deles organizados pela Liga Caxiense de Futebol, fundada em
1936.
A
atividade social na sede era muito intensa. Após os jogos, costumavam se
realizar bailes, entre os quais o “Da Pelúcia”, quase sempre sob a
responsabilidade das associadas. Também eram elas que se encarregavam da
organização dos Bailes de Debutantes, Bailes de Gala e da decoração do salão de
festas para essas ocasiões.
Ainda
organizavam concursos de beleza, entre os quais “Rainha do Clube”, “Rainha do
Carnaval”, “Rainha da Primavera” e outros. A escolha das rainhas era um
atrativo a mais para os bailes realizados e durante muito tempo ajudaram nas
finanças do Clube.
Era
comum quando de dificuldades financeiras, eleger-se a Rainha através da venda
de votos. Dessa forma, aquela que vendesse mais votos ganhava o título e o
dinheiro ficava com o Clube.
Também
cabia às mulheres a organização do bloco carnavalesco do clube. Em 1950, uma
comissão de senhoritas percorreu a cidade a fim de angariar fundos para a
formação de um cordão carnavalesco. Logo após, foi fundada a Escola de Samba “Os
Protegidos da Princesa”.
No
carnaval de 1960, o Gaúcho foi o clube que melhor se apresentou no desfile do Carnaval
de rua de Caxias do Sul. Em 1962, aconteceu o primeiro concurso entre os blocos
carnavalescos da cidade, numa promoção da Rádio Caxias e oficializado pela
Prefeitura Municipal. O campeão foi o bloco “Os Protegidos da Princesa”.
A
escola venceu todos os Carnavais na década de 1960. Em 1970 não desfilou.
Voltou em 1971, não mais como escola de samba, sim como tribo carnavalesca. A
partir daí o clube passou a ter uma participação inconstante no Carnaval de rua
caxiense. Isso se explica pela economia destinada a construção de uma nova
sede.
A
primeira sede do Gaúcho foi no centro da cidade, na Rua Pinheiro Machado, 2369.
No início do ano de 1950, mudou-se para outro local, na região conhecida como
Zona Tupy.
Em
1966 deu início a construção de uma nova sede. A participação decisiva de
casais de sócios, que conseguiram um empréstimo junto a Caixa Federal e se
tornaram fiadores do Clube, permitiu a concretização do objetivo.
Em
sua nova sede, na rua São José, o Gaúcho reservou lugar de destaque para a sua
biblioteca, inaugurada em 1962. Nesse novo espaço foram realizados o Iº
Encontro de Estudos Sócio Culturais de Integração Afro-Italiana, na década de 1970,
e a Iª Semana do Negro, já nos anos 1980. O espaço também serviu para a
realização de cursos de alfabetização e de corte e costura.
A
história do Sport Club Gaúcho, mesmo tendo sido em certa época invisibilizado
pela historiografia caxiense, teve papel importante na história da cidade. O
Clube participou, de forma intensa, nos mais diversos setores da sociedade
local, tanto através do futebol, quando estabeleceu laços de solidariedade com
os demais clubes da cidade, o que possibilitou a integração junto aos brancos,
descendentes de italianos, lusos e tantos outros.
Foto do tempo em que a entidade praticava o futebol. (Fonte: www.efdeportes.com)
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