“Béla
Guttmann – Uma lenda do futebol do século XX”, livro publicado pela Editora
Estação Liberdade, merece ser lido. É uma obra valiosa escrita pelo jornalista
e professor Detlev Claussen, com tradução de Daniel Martineschen e Alexandre
Fernandez Vaz.
De
temperamento forte, Béla Guttmann foi uma espécie de José Mourinho de seu
tempo. Tanto pela capacidade superior de “ler” o futebol em suas variantes
técnica, tática e física, quanto pelas recorrentes polêmicas em que se
envolvia.
Apesar
de ter sido um jogador de algum talento, foi como treinador que se destacou,
num tempo de transição do futebol, entre o amadorismo e o profissionalismo.
Austero,
Guttmann jamais se submeteu a dirigentes ou a jogadores-estrela, o que, com
frequência, o fazia debandar — ou ser debandado — dos clubes que dirigia.
Antecipando
o movimento de globalização no futebol que se acirraria mais marcadamente a
partir dos anos 1990, Guttmann foi um andarilho no mundo da bola.
Além
da Hungria, atuou em países como Holanda, Áustria, Itália, Estados Unidos,
Argentina e Portugal. E teve ligações profundas também com o futebol
brasileiro: em 1957, aceitou o convite para treinar o São Paulo Futebol Clube,
com o qual se sagrou campeão paulista.
Guttmann
impôs logo de cara a contratação de um jogador que encarnasse o tal
“futebol-arte”. E foi buscar um veterano, Zizinho, o "Mestre Ziza".
Na época, com 35 anos, era o modelo e ídolo de Pelé.
Mais
do que isso, o estilo tático de Guttmann, com o inovador e ultraofensivo
esquema 4-2-4, influenciou de forma certeira na maneira de jogar da própria
seleção brasileira comandada por Vicente Feola que, no ano seguinte, levantaria
seu primeiro título mundial.
Húngaro
judeu, ex-jogador, treinador de sucesso planetário, mitificado sobretudo depois
de arrebatar por duas vezes a Liga dos Campeões da Europa no comando do
Benfica, de Lisboa — tendo derrubado, para tal, nada menos que a poderosíssima
dupla espanhola, Barcelona e Real Madrid.
Mas
se é amado até hoje dentro da comunidade benfiquista por tais façanhas, Béla
Guttmann é, paradoxalmente, odiado em igual medida.
Depois
da conquista frente ao Real, em 1962, o húngaro se desentendeu com a direção do
clube lisboeta e não renovou o contrato, debandando de lá não sem antes anunciar
uma maldição aparentemente profética: a de que o Benfica não voltaria a vencer
uma competição continental pelos próximos 100 anos.
Dizem
que alguns torcedores do time, “antes da final da Liga dos Campeões contra o
Milan em 1990, teriam ido ao cemitério de Viena e de lá teriam trazido um naco
de grama do túmulo de Guttmann, para quebrar a maré de derrotas nas finais
europeias”.
Não
deu certo: o Benfica perdeu a decisão, assim como ocorreu em todas as outras
vezes em que fora finalista nas eras pós-Guttmann: em 1963, também contra o
Milan; em 1965, contra a Inter de Milão; em 1968, contra o Manchester United;
bem como nas finais da Liga Europa, a antiga Copa da Uefa, contra o Anderlecht,
em 1983, e o Chelsea, em 2013.
E
em maio de 2014, o fantasma de Guttmann voltou a assombrar, quando o Benfica
caiu em nova decisão continental, a da Liga Europa, desta vez frente aos
espanhóis do Sevilha.
A
carreira de Béla Guttmann se cruzou com grandes jogadores, os melhores do
pós-guerra como Puskás, Di Stéfano, Eusébio e Pelé. Foi o técnico que marcou o
moderno futebol ofensivo mais do que qualquer outro.
Lacrados
sob uma imponente lápide de mármore vermelho jazem os restos mortais de Béla
Guttmann, na ala judaica do Cemitério Central de Viena.
Apenas
as datas de nascimento e morte – 27 de janeiro de 1899 e 28 de agosto de 1981 –
estão registradas sobre a pedra. Uma discreta inscrição em hebraico revela seu
prenome judeu, Baruch. Não se encontra nenhuma indicação de sua esposa,
Marianne, que o acompanhou ao redor do mundo. Não tiveram filhos.
Depois
da morte da esposa, em 1997, o espólio de Guttmann vagou por antiquários de
Viena, até chegar em 2001 a Kassel, na Alemanha, adquirido por um leiloeiro
especializado em esportes.
O
que permanece de um grande jogo, de um grande jogador, de um grande treinador?
No final, resta apenas um nome que logo cairá no esquecimento se a história
ligada a ele não for narrada.
Até
mesmo o funcionário do cemitério em Viena, que sem dúvida se interessava por
futebol, 20 anos depois da morte de Béla Guttmann pouco sabia sobre o defunto:
“Era algum jogador de futebol!”. E mais nada.
Nos
documentos do Cemitério Central não há registro do túmulo, mas o funcionário
tinha uma ideia de onde ele podia ser encontrado: “Procure na ala judaica”. De
fato, lá está a impressionante lápide com o nome, mas não a recordação do
futebol que tornou esse nome mundialmente conhecido.
Antes
que as peças se dispersassem pelo mundo, surgiu um catálogo com uma tentativa
biográfica, Die Trainerlegende – Auf den Spuren Béla Guttmanns (O legendário
treinador – Nos rastros de Béla Guttmann), assinado por R. Keifu, pseudônimo
sob o qual se ocultou o renomado historiador do esporte e expert em futebol
Hardy Grüne.
Guttmann
permanece sendo até hoje uma figura cercada de lendas e mistérios. Ainda em
vida, no topo de sua carreira de treinador de clubes, viu surgir Béla Guttmann
Story, escrito pelo pedagogo do futebol e depois professor escolar Jenö
Csaknády.
O
livro promete, em seu subtítulo, uma história “dos bastidores do mundo do
futebol”. De fato, em 1964, quando o texto foi publicado, mal se podia
desconfiar dos acontecimentos mundiais que fariam um Guttmann circular pelo
globo.
Mas
quem pensa em futebol ao visitar um cemitério? Em um cemitério judeu se tenta,
antes de tudo, ler os números e combiná-los com os lugares onde cada pessoa
nasceu e morreu.
O
irmão de Béla Guttmann, que jogava futebol com ele durante a Primeira Guerra
Mundial, morreu em 1945 em um campo de concentração alemão.
Sobre
a sobrevivência de Guttmann durante o período nazista as fontes não são, no
entanto, muito eloquentes. História do futebol também não é somente algo
secundário e bonito, mas sim parte da história mundial, que não pôde deixar de
ser afetada por esse esporte.