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terça-feira, 12 de novembro de 2019

A morte do roupeiro do Inter-SM

Monovan Gomes, mais conhecido por “Mano”, 66 anos, era praticamente um desconhecido, até virar notícia naquela noite de 27 de março de 2014. Pode parecer cruel, mas ganhou notoriedade por que morreu logo depois que o atacante Josiel, ex-Flamengo, do Rio de Janeiro, errou um pênalti, em jogo contra o F.C. Santa Cruz, de Santa Cruz do Sul, válido pelas quartas de final do primeiro turno da “Divisão de Acesso” do “Campeonato Gaúcho”, disputado no “Estádio Presidente Vargas”, na “Cidade Universitária”.

Ele só virou notícia por causa de Josiel, que além de ter jogado no rubro-negro carioca, foi artilheiro do “Brasileirão” de 2007 pelo Paraná Clube.

Josiel já havia feito 1 X 0 para o Internacional, de Santa Maria, quando ele próprio cavou um pênalti após cobrança de falta na área do Santa Cruz aos 18 minutos do segundo tempo, provocando ainda a expulsão do zagueiro Diego Borges, que o teria agarrado, na visão do árbitro Daniel Nobre Bins.

O próprio Josiel partiu para a cobrança. O pênalti acabou parando na trave esquerda do goleiro Juliano. E a classificação à semifinal, que parecia certa, ficou ameaçada. No lance seguinte, Caio empatou a partida para o time de Santa Cruz.

Revelado nas categorias de base do Inter de Santa Maria, Josiel acabara de retornar ao clube já em final da carreira, na esperança de devolvê-lo à “Primeira Divisão” do futebol gaúcho. 

Depois do estrelato, o atacante nascido em "Rodeio Bonito" (RS) vivia um ocaso na carreira, e sua volta ao clube que o havia revelado no final dos anos 90, era uma daquelas potenciais histórias em que ídolo e time se reencontram para se reerguerem.

A notícia vinda do vestiário acabou parando a partida por cerca de 13 minutos. “Mano”, o roupeiro do clube, havia sofrido um mal súbito e teve de ser levado ao "Pronto-Atendimento" do bairro Patronato.

A bola voltou a rolar e o Inter acabou vencendo por 2 X 1, avançando à semifinal do primeiro turno, quando acabou eliminado pelo Ypiranga. No segundo turno, o time não conseguiu a classificação para a fase final.

Na manhã de 28 de março de 2014, o jornal “Diário de Santa Maria” noticiava em manchete: “Roupeiro do Inter de Santa Maria morre após mal súbito em jogo do time na Divisão de Acesso”.

A notícia rapidamente ganhou os portais nacionais. No UOL, a manchete procurava chamar a atenção do leitor, fazendo a conexão do atacante Josiel, em campo naquela partida, com seu ex-clube mais famoso: “Roupeiro sofre infarto e morre após ex-flamenguista errar pênalti”.

Sites de todo o Brasil publicaram a notícia inusitada sobre a morte de um roupeiro após seu time perder uma cobrança de pênalti. Os jornais de Santa Maria ainda noticiaram o enterro do funcionário do clube, mas depois do dia 28 de março nenhum outro site voltou à história, que rendera cliques na noite anterior, mas já era passado.

Por trás da notícia inusitada, que perdeu o interesse no intervalo de 24 horas, está a história de um homem que dedicou grande parte da sua vida a um clube do interior gaúcho — e que por fim saiu de cena exatamente numa partida do clube que tanto amou.

Após o gol de empate do Santa Cruz, ”Mano” chamou no vestiário o conselheiro Rafael Pillar, e disse que estava se sentindo mal. Pillar auxiliou o roupeiro a deitar-se numa maca e informou o delegado da “Federação Gaúcha de Futebol” Hamilton Oliveira, que prontamente interrompeu a partida e chamou a ambulância.

Antes de deitar, o “Mano” ainda teve o cuidado de aumentar o volume do rádio para seguir acompanhando o jogo.

Ele foi levado à ambulância de onde seguiu para o “Pronto Atendimento" do Patronato, bairro próximo ao campo do Inter. Junto na ambulância, o roupeiro carregou consigo o inseparável radinho, por onde pôde ouvir o segundo gol do alvirrubro, marcado pelo zagueiro Diego Rocha. 

E antes de entrar em óbito ele conseguiu ouvir que o Inter tinha conseguido a classificação.

"Mano" não resistiu, sofreu um infarto e faleceu logo após a partida. Os jogadores ficaram sabendo de sua morte só depois. No dia seguinte, todo o grupo compareceu ao velório para dar o último adeus ao funcionário com o qual conviviam todos os dias.

“Nós vimos que o "Mano" saiu de ambulância, mas ninguém esperava que fosse acontecer aquilo, isso abalou todo o grupo”, comentou Josiel. O zagueiro Diego Rocha, autor do gol da classificação, se surpreendeu quando ficou sabendo que “Mano” ainda conseguiu ouvir a vitória do clube que mais amava.

“Jamais esperava que ocorresse isso com ele, era uma pessoa muito boa, mas agora quero que aquele gol fique como uma homenagem”, disse.

Sua morte virou notícia, mas ninguém procurou saber sobre sua vida dedicada a um clube do interior gaúcho.

“Mano” era o nono de 12 filhos. A ligação com o Esporte Clube Internacional, clube de Santa Maria, vinha de casa. Seu pai, Miguel Pereira Gomes, conhecido popularmente como “Tabica”, foi um dos fundadores do clube em 1928 e chegou a ser jogador.

A mãe, dona Valmira, também frequentava os jogos, o que fez até o fim da vida. O Inter de Santa Maria, no fim das contas, era mais um filho do casal. O Inter era um irmão de “Mano”.

Nascido em 1947, “Mano” tentou jogar futebol, mas não obteve sucesso. No entanto, nunca esteve distante do clube que o viu nascer. No início dos anos 1980, foi parte de um capítulo importante da história do Inter-SM ao criar, ao lado de Marcelino Cabral, a torcida “Maré Vermelha”, uma das primeiras torcidas gays do Rio Grande do Sul e reconhecida em todo o interior do Estado.

Marcelino Cabral era carnavalesco e conhecido por ser integrante da “Escola de Samba Vila Brasil”, que tinha uma ala gay na sua composição. O Marcelino e um grupo de gays decidiram ir a um jogo do Riograndense e tiveram o acesso negado.

A partir daí eles acabaram se organizando e foram para o Inter-SM. Dessa forma surgiu a “Maré Vermelha”. O nome veio em consequência do desastre ocorrido em 1978 na costa de Santa Vitória do Palmar, no extremo-sul brasileiro, em que milhares de animais marinhos começaram a aparecer mortos na "Praia de Hermenegildo".

A casa de “Mano” acabou virando uma grande sede da “Maré Vermelha”. A mãe dele e toda família se agregaram a torcida. Na casa eram feitas algumas comidas para vender e angariar recursos para confeccionar camisetas e faixas naquela época.

A torcida que animava o "Estádio Presidente Vargas" acabou extinta em meados dos anos 90 devido a uma briga entre um diretor do clube e Marcelino Cabral, um dos seus fundadores. “Mano”, que nessa época trabalhava em lojas do comércio local, não deixou de acompanhar o clube do coração e seguiu frequentando os jogos.

Ele participou desde o início até o fim da torcida, mas, segundo a família, sempre foi reservado com relação a sua orientação sexual. Sempre foi solteiro, nunca teve companheiro ou companheira.  Era muito discreto, se era homossexual ou não, isso nunca interferiu no trabalho dele.

Após o término da torcida, “Mano” recebeu o convite para se tornar funcionário do clube do coração. O cargo no papel era de roupeiro, mas diante do amor que tinha pela instituição não tardou a exercer uma função de faz-tudo. Era o primeiro a chegar e o último a sair.

O volante Douglas T-Rex, que estava presente no fatídico jogo diante do Santa Cruz recorda: “O Mano vivia o Inter. Todos os dias que a gente chegava para treinar, o treino estava marcado para às 9h da manhã, e uma hora antes já estavam todas as caixinhas prontas com o material de treino de cada jogador. Com as chuteiras limpas e lustradas. “Mano” era um roupeiro muito caprichoso, não parava um minuto quieto no vestiário.

“Mano” conhecia cada canto do “Estádio Presidente Vargas”, ali era o seu lugar, o ambiente em que mais gostava de estar. Ele vivia mais no Inter do que em casa, levantava de manhã cedo e já saía para o Estádio, passando o dia todo lá.

“Mano” não teve filhos, nas horas vagas gostava de ir a festas, entre música e dança, sua principal característica era a animação. O sentimento de pai talvez tivesse sido transportado para a relação com os jogadores.

“Todos eram unânimes em ressaltar a alegria dele no vestiário. Estava sempre de bom-humor, era um cara do bem, tranquilo, bem respeitoso com os atletas e fazia o trabalho dele com discrição na maior parte do tempo, mas também entrava nas brincadeiras junto com todo grupo”, contou o atacante Josiel, protagonista daquela partida.

A preocupação com os outros era um traço marcante na personalidade de “Mano”. A situação financeira sempre difícil dos clubes do interior gaúcho foi algo que jamais desmotivou o ex-roupeiro no seu trabalho diário, nunca interrompido por falta de pagamento.

Se a situação era difícil, ele dava um jeito de colaborar. De vez em quando, se dava algum problema lá no Inter, ele trazia o fardamento dos jogadores para lavar em casa. Algumas vezes foram feitas jantas por seus familiares, para os jogadores também, principalmente para aqueles que não eram de Santa Maria e região.

Fundado em 1928, o Inter-SM surgiu a partir da ideia de criar uma equipe que pudesse fazer frente ao Riograndense Futebol Clube, na época uma potência do futebol gaúcho e vice-campeão estadual em 1921. 

O “Periquito”, como é conhecido o Riograndense, representava a comunidade ferroviária de Santa Maria, um importante polo desse setor no Rio Grande do Sul.

A história começou com três guris que se juntavam para bater uma bola. Eles tiveram a ideia de formalizar essa iniciativa criando um clube de futebol. O tio de um deles “patrocinou” os meninos com os equipamentos e assim nasceu o Esporte Clube Internacional”, explicou o jornalista e escritor Cândido Otto da Luz, autor do livro “Almanaque dos 80 anos — E.C. Internacional”.

Os mentores da criação foram Érico Weber, José Benevenutto Lozza, o Juca Lozza, e Olavo Castagna. Antônio Lozza, tio de Juca, foi quem doou os primeiros uniformes, já em vermelho para combinar com a cor de preferência de seu lenço, já que Lozza era partidário dos maragatos.

Como o "Colorado", de Porto Alegre havia sido campeão gaúcho pela primeira vez em 1927, o nome escolhido foi Internacional, também pelo fato de que em Santa Maria já havia o “Grêmio”, o extinto Grêmio Sportivo Brasil.

Os primeiros enfrentamentos entre Inter-SM X Riograndense apontavam amplo predomínio do clube ferroviário. Foi apenas nos anos 1940, no entanto, que as disputas se equilibraram no duelo “Rio-Nal”.

Nessa década, o Inter-SM conseguiu a primeira vitória em clássicos, em 1940, e obteve algumas conquistas do campeonato citadino. Porém, a impulsão do clube se deve a outro fator.

O Inter-SM esteve a ponto de fechar, mas a construção do ”Estádio Presidente Vargas”, em 1947, sem dúvida nenhuma foi o ponto de virada para o clube se estruturar, afirmou Cândido, se referindo à importância da construção da “Baixada Melancólica” para o crescimento da entidade.

Erguido ao lado do “Cemitério Municipal”, palco de repetidas derrotas em jogos importantes e atravessada, no inverno, por um cortante vento de mau agouro, o “Presidente Vargas”, também chamado de “Baixada”, logo viu o “Melancólica” juntar-se ao nome.

Em 1949, o alvirrubro santa-mariense revelou Waldemar Rodrigues Martins, o Oreco, que posteriormente se tornou ídolo no Internacional, de Porto Alegre e integrou a “Seleção Brasileira” campeã da “Copa do Mundo”, na Suécia, em 1958.

O grande período da história do Internacional, de Santa Maria foi, sem dúvidas, o início dos anos 1980. O clube teve campanha de destaque no “Gauchão” de 1980, fato que garantiu a classificação para a disputa da “Taça de Prata” do ano seguinte (equivalente à “Segunda Divisão” do “Campeonato Brasileiro”).

Ainda naquele ano, o Inter-SM sagrou-se campeão do interior com vitórias sobre Grêmio e Internacional na campanha exitosa. A vitória sobre o Grêmio, aliás, é guardada com carinho na memória do torcedor alvirrubro.

No dia 8 de novembro de 1981, o Inter-SM derrubou o "Tricolor" gaúcho, então campeão brasileiro, por 3 X 1, no “Estádio Presidente Vargas”. No elenco gremista estavam nomes como o goleiro Leão, Hugo De León, Tarciso e Baltazar.

O desempenho no “Campeonato Gaúcho” de 1981 rendeu a classificação para a disputa da “Taça de Ouro” de 1982, “Primeira Divisão” do “Campeonato Brasileiro”. 

O clube chegou a enfrentar o Vasco da Gama em duas oportunidades, goleada vascaína por 7 X 0 no”Maracanã” e resposta colorada em Santa Maria, com vitória por 3 X 0 sobre o cruzmaltino de Roberto Dinamite e Antônio Lopes.

A ascensão do lado vermelho de Santa Maria coincidiu, no entanto, com o enfraquecimento do maior rival. Com a decadência do setor ferroviário, o Riograndense encerrou as atividades profissionais, fechando o departamento de futebol e licenciando-se da FGF.

O enfraquecimento econômico da região central do Rio Grande do Sul também acabou por vitimar o Inter-SM. O clube perdurou por anos na elite do futebol gaúcho até ser rebaixado em 1989.

De lá pra cá, alternou acessos e rebaixamentos. O último acesso do clube foi em 2007. No ano seguinte, na "Primeira Divisão", o alvirrubro fez excelente campanha e terminou na terceira colocação.

Contudo, as dificuldades financeiras impuseram um novo rebaixamento à “Divisão de Acesso” em 2011, onde o clube se encontra até hoje. (Pesquisa: Nilo Dias)


O roupeiro "Mano".