São
diversas as lendas e histórias que circulam por lá. Eu freqüento a vila há
quase 5 anos, pois faço trilha na
região. Lá cheguei a ouvir as seguintes histórias:
A
verdadeira história do futebol brasileiro ainda não está devidamente
esclarecida. Muitas são as versões que contam a chegada do esporte criado pelos
ingleses ao nosso país. A maioria dos historiadores atribui a Charles Miller o
feito. Mas não é unanimidade.
Existem
registros que comprovam a prática do esporte no país já em 1874, quando
marinheiros estrangeiros disputaram uma partida na praia do Botafogo. Fala-se
também que entre 1875 e 1876, no campo do Payssandu Atlético Clube, no Rio de
Janeiro, funcionários de duas companhias teriam jogado uma partida. Em 1878
tripulantes do navio “Criméia” jogaram
futebol em um terreno descampado, frente à residência da Princesa Isabel, no
Rio de Janeiro.
Em
1886, o Colégio Anchieta, em Nova Friburgo (RJ), por influência de padres
jesuítas promovia regularmente a prática do novo esporte. É dito também que em
1882, um homem chamado Mr. Hugh teria introduzido o futebol em Jundiaí (SP),
entre seus funcionários.
Historicamente
o Bangu A.C., tradicional time do Rio de Janeiro também vem contestando o
pioneirismo de Charles Miller. Para o clube de “Moça Bonita” teria sido o
escocês Thomas Donohe o introdutor do futebol em terras tupiniquins. Thomas era
um técnico da firma inglesa “Platt Brothers and Co.”, de Southampton, e tinha
sido contratado para ajudar na implantação da fábrica textil de Bangu.
Em
1894, quatro meses antes de Charles Miller, Thomas teria ido a Inglaterra e de
lá trazido uma bola de futebol, dando o pontapé inicial ao esporte no Brasil,
em maio daquele ano.
Já
o historiador Loris Baena Cunha fala da existência de registros de uma
partida entre funcionários ingleses da “Amazon Steam Navigation Company Ltd.”, da
“Parah Gaz Company” X “Western Telegraph”, no Pará, em 1890.
Também
se diz que o primeiro jogo de futebol realizado no Brasil, dentro das regras
estabelecidas na Inglaterra, foi disputado no dia 14 de abril de 1895 na Várzea
do Carmo, em São Paulo, reunindo os times da “San Paulo Gás Company” e da
“Estrada de Ferro São Paulo Railway”, vencido por este pelo escore de 4 X 2. Os
dois times eram formados por amigos de Miller, todos da elite de São Paulo,
filhos de barões do café e engenheiros.
Mas
essa versão pode não ser verdadeira. Na pequena vila de Paranapiacaba, hoje
pertencente ao município de Santo André (SP), ainda resiste ao tempo o campo de
futebol mais antigo do país, inaugurado em 1894, um ano antes do jogo promovido
por Charles Miller na Várzea do Carmo. Hoje, ostenta o nome de “Campo Charles
Miller” e se localiza na Avenida Fox, S/N.
Para
quem não conhece, Paranapiacaba é um distrito, que pertence a Santo André,
embora seu território não esteja dentro da cidade. A história do lugar começou
com a chegada da Companhia Inglesa de trens, a “São Paulo Railway”, que operava
a estrada de ferro Santos-Jundiaí. Atualmente a Vila é um “museu a céu aberto”
sobre o transporte ferroviário.
As
primeiras casas rústicas foram construídas por volta de 1867 até a década de
30. Nos anos 40 a vila e a ferrovia foram incorporadas à malha ferroviária do Estado,
a antiga Fepasa. A partir desta época começou um processo de degradação nas
casas.
Muitos
ingleses que moravam por lá voltaram ao seu país de origem, com as famílias
levando inclusive os restos mortais que estavam no cemitério da antuiga Vila
Inglesa, que em 1907 passou a se denominar Paranapiacaba.
Sabe-se
da existência de outros gramados históricos no Brasil, mas nenhum que resista
há tanto tempo e receba partidas até hoje em caráter de amistosos. O campo da
Vila, localizado na parte baixa da Vila, se encontra abandonado, com grama alta
e gols sem rede, cercado de árvores, ruas ainda de terra e é vizinho de casas
de madeira do século XIX. Os moradores, entretanto, garantem que de vez em
quando a bola rola por lá.
Mas essa situação de abandono pode estar com os dias
contados. A vila de Paranapiacaba foi contemplada com recursos do “PAC Cidades
Históricas” e, dentre os projetos, há um de restauração do campo de futebol,
que deve passar por uma boa reforma.
A
antiga Vila Inglesa que guarda mais de um século de vida, atualmente não tem um
projeto oficial para a Copa de 2014. Mas sabe-se que Paranapiacaba deseja
"oficializar" que abriga o campo de futebol mais antigo do Brasil,
num amistoso entre Seleção do ABCD e Seleção de ex-jogadores italianos
(masters), com presença do neto de Charles Miller, Charles Miller Neto. Neste
evento, também vai ser descerrada uma placa de prata à entrada do estádio
municipal do União Lyra Serrano.
Não
se tem registros que comprovem, mas sim suspeitas de que ali naquele pedaço
vivo da história Anglo-Brasileira, tenha sido realmente jogada a primeira
partida de futebol no país. É certo que o legado britânico não se estendeu
apenas ao universo ferroviário. A vila abriga um dos campos de futebol mais
antigos do Brasil, aberto no final do século 19, onde, reza a lenda, jogou
Charles Miller, ele próprio um ex-funcionário da SPR.
Historiadores,
livros e autoridades atestam que nesse local foi escrita uma das histórias mais
românticas do futebol no País. O secretário de Gestão de Recursos Naturais de
Paranapiacaba e Parque Andreense, Ricardo Di Giorgio, não tem dúvida em dizer
que ali ocorreu o primeiro chute na bola no Brasil.
E
desafia quem for contra a sua tese de que o futebol nacional começou naquele
campo que prove o contrário com os devidos documentos. Di Giorgio está apoiado
em registros bibliográficos.
Por
exemplo: o livro “Caminho do Café”, de Cremilda Medina, cita em um trecho que
“Do chute inicial em 1894, aos dias atuais, mudanças radicais mexeram com a
história do futebol que se propagou pelo País inteiro”. Já o escritor inglês
John Robert Mills também escreveu sobre o assunto em 2003, afirmando que o
futebol chegou primeiro em Paranapiacaba.
O
escritor e historiador esteve há seis anos na Vila numa homenagem ao neto de
Charles Muller, em festa que aconteceu na sede do clube do União Lyra Serrano,
que jogaram contra os veteranos do Corinthians, que trouxeram Zenon e Dinei,
entre outros.
O
historiador Ademir Médici, autor de mais de 25 livros de diversos temas sobre a
região do ABCD paulista, garante com base em sua longa experiência no
jornalismo, que o futebol sequer passaria perto de Paranapiacaba, caso não
fosse os ingleses. Eles chegaram na Vila por volta de 1861 às margens dos
trilhos da São Paulo Raillway (SPR), verdadeiro canteiro de obras, na
construção da estrada de ferro.
Assim,
em meados de 1894, chegou à Paranapiacaba aquele que é proclamado como o pai do
futebol brasileiro, Charles Miller, que estudou na Inglaterra e, em férias,
trouxe ao Brasil duas bolas de futebol e regras do jogo, e quatro ou cinco
pares de chuteiras. Charles foi telegrafista da São Paulo Raillway.
O
mini-documentário “Estádios Extintos, do Apogeu ao Ostracismo”, trabalho
apresentado na Universidade Metodista, em São Bernardo do Campo (SP) pelo
jornalista Diego Salgado, buscou saber onde ficavam os primeiros campos de
futebol. Se em Paranapiacaba, histórica vila ferroviária inglesa, no alto da
Serra do Mar, ou no centro de São Paulo, no miolo do Velódromo criado em 1892
por Veridiana Prado para seu filho Caio Prado.
A
equipe responsável pelo filme ouviu pesquisadores e fanáticos por futebol . O
documentário começa em um local histórico: o quarteirão do Teatro de Cultura
Artística, no bairro paulistano da “Consolação”, onde ficava o antigo estádio
do Velódromo, o primeiro campo oficial da cidade, palco dos primeiros
campeonatos paulistas. E fala sobre os campos da “Chácara Dulley”, no Bom
Retiro, o primeiro “Palestra Itália”, e a construção do “Pacaembu”.
O
primeiro time de futebol que se tem notícia em Paranapiacaba foi o Serrano
Atlético Clube, fundado em 1903. Não existem muitos registros que contem a
trajetória do clube. Sabe-se de um fato que até hoje orgulha os habitantes da
Vila: em julho de 1925, no histórico campo mais velho do Brasil, o Serrano
Atlético Clube derrotou o poderoso Corinthians Paulista por 2 X 1. A taça que
lembra o feito, está até hoje exposta na Sala de Troféus do clube.
O
Serrano A.C. foi o primeiro time de futebol de toda a região do ABC a ser
fundado. Congregava ferroviários da “São Paulo Railway”. Chegou a enfrentar
grandes clubes do futebol paulista como Santos e Corinthians. Em 1930 fez fusão
com a Sociedade Recreativa Lyra da Serra, quando passou a se chamar Clube União
Lyra Serrano.
O
edifício do clube União Lyra Serrano, no Alto da Serra, representa um dos mais
antigos clubes de "football" do Estado. Aos domingos à noite havia
uma sessão de cinema mudo, geralmente com filme em série. No salão cada grupo
de família tinha os seus lugares certos. A orquestra era composta de músicos
locais.
Também
existia um salão para jogo de bilhar, e nos fundos dois campos para bochas. A
Sociedade Recreativa Lyra da Serra, hoje, União Lira Serrano, em razão da união
feita com o Serrano Football Club, tem sede ampla com salões para cinema e
bailes, jogos diversos e biblioteca e o campo de futebol, que ocupa local de destaque,
dentro da Vila.
Em
1907, começaram as construções da sede atual que, em 1938, foi ampliada
adquirindo a feição hoje existente: um grande edifício de dois andares,
totalmente construído em madeira de lei, principalmente pinho-de-riga,
importada da Inglaterra.
Antigamente,
ao final da escada de madeira, na porta de um camarote, podia-se: “Este
reservado é de uso exclusivo dos senhores Mr. Alfred E. Whitton, Dr. Jorde A.
Boeri, Arno L. M. da Veiga e respectivas famílias”. Outrora, os degraus de todas
as escadas internas recebiam tapetes de veludo.
Quem
chega hoje em Paranapiacaba certamente não pode imaginar que aquele campo com
grama alta e uma arquibancada pequena, um dia sediou jogos de times
profisionais. O União Lyra Serrano jogou divisões inferiores do “Campeonato
Paulista”, enfrentando os tradicionais Jabaquara, Portuguesa Santista e
Nacional, fundadores da Federação Paulista de Futebol (FPF).
Foi
assim até 1935, quando o clube abandonou o futebol profissional e se dedicou ao
amadorismo, até paralisar as atividades. Hoje, realiza apenas jogos amistosos.
Mas tem quem queira levantar o time. Antonio Fernando, espécie de presidente,
que tem um bar perto do campo, o “Bar do Paulo”, busca meios para levantar o
União novamente.
Nas
prateleiras do bar, dona Silvia, uma das funcionárias, mostra alguns troféus,
diversas bolas e camisas do Lyra, em branco e preto. E um exemplar de camisa
que poderia valer hoje mais de R$ 250. E sempre nas cores branca e preta.
Os
ex-jogadores mais antigos lembram que o Serrano sempre teve muitos atletas com
apelidos, casos de “Fanta”, “Índio”, “Pícoli”, “Bitelo”, “Panqueca”, “Bocudo”,
“Redondo”, “Hervedera”, “Zé Grandão”, “Zé Galinha”, “Tartucci”, “Frujuelli”,
“Cachaça”, “Pau Mandado”, “Cirillo Gago”, “Jumento”, “Rolha”, “Chamuscado”,
“Valtão”, “Boquita”, “Sarampo” e “Juca Pato”, entre outros.
“João
Gordo”, 67 anos, ex-maquinista de trem, lembra que os jogadores de outras
cidades adoravam jogar na Vila porque viajavam de trem. Aos domingos, logo pela
manhã, o trem chegava apitando no pequeno vilarejo e acordando os seus
moradores.
Mas
o futebol pode estar retornando a antiga Vila Inglesa. Em 14 de abril de 2010
foi fundado o União Esportiva Charles Miller. O novo clube surgiu na mesma data
em que foi realizado o primeiro jogo de futebol no Brasil.
O
evento teve início no Clube Lira Serrano, onde foi apresentado a todos o neto
do pai do futebol, Charles Miller Júnior, que acompanhou a homenagem à seu avô,
mostrado através do telão a história de Charles Miller.
O
escritor John Robert Mills, autor da biografia de Charles Miller, disse estar
feliz pela iniciativa da criação do time e não poderia ser em um lugar melhor,
pois Paranapiacaba era a rota obrigatória dos europeus, que chegavam no Porto
de Santos e subiam a Serra em direção à São Paulo. “Charles Miller, em uma de
suas viagens, trouxe na bagagem a bola, a chuteira e as regras do jogo”, conta
Mills.
O
presidente do União Esportiva Charles Miller, Carlos Machado, conta que a idéia
do time começou com jovens da escola municipal de Paranapiacaba e, dentre os
nomes sugeridos, escolheram Charles Miller, com objetivo de homenageá-lo. Contou
que jamais esperou que tivesse tamanha repercussão.
Depois
o União Esportiva Charles Miller realizou um jogo amistoso contra equipe Master
do S.C. Corinthians Paulista, que trouxe entre outros os ex-jogadores Dagoberto
(suplente de Ronaldo nos anos 80 e 90), Pavão (lateral), os zagueiros Guinei e
Dama, Ezequiel (volante), Agnaldo (ponta direita) e Zenon (meia e ex-seleção
brasileira).
Também
foi apresentado o uniforme do time, vermelho e branco, com o escudo mostrando
uma locomotiva, que simboliza a chegada da ferrovia no Brasil e, à frente, a
bola trazida por Charles Miller e o limpa trilho com as cores da Inglaterra.
Quantos
gols já teriam sido marcados nesse velho estádio de Paranapiacaba? Quantos
sonhos este campo teria alimentado? A arquibancada singela ao fundo segue
preparada para receber torcedores que queiram assistir a um jogo amador, e
reviver parte do passado do futebol no Brasil.
Paranapiacaba
é considerada um museu a céu aberto, pois a Vila remete todos às épocas do
século XIX, com construção inglesa, possuindo inclusive a réplica do “Big Bem”.
Traz em seu campo de futebol o mesmo clima da primeira partida realizada em
1894.
E
se tiver sorte, vai apreciar um lindo espetáculo da natureza, a neblina, que
cobre histórias, campos, trens Em questão de minutos, o sol some e a neblina
cobre toda a Vila.
Uma
pena que os trilhos que levam até a vila estejam cada vez menos utilizados
(apenas para transporte de cargas e trens turísticos, com passagens mais
caras). Mas de qualquer maneira seria bom fazer essa atraente viagem ao
passado, e conhecer um local de muita história para o futebol brasileiro.
(Pesquisa: Nilo Dias)
O histórico campo de Paranapiacaba, o mais antigo do futebol brasileiro