Sua
criação também serviu como uma reação à “linha de cor” que imperava dentro e
fora dos gramados naqueles tempos. Os grandes times do futebol paulista eram o
Club Athlético Paulistano, a Associação Athlética das Palmeiras e o Sport Club
Corinthians Paulista, nascido em 1910.
Os
dirigentes desses clubes acreditavam que os atletas negros eram inferiores aos
brancos na técnica e à ciência do futebol clássico Mesmo quando algum era
aceito para jogar, não tinha permissão para participar das suas atividades
sociais – como festas e bailes.
A
Associação Athletica São Geraldo foi conhecida em seus áureos tempos como o
“clube dos homens de cor”. Sua fundação ocorreu no dia 1º de novembro de 1917,
por um grupo de desportistas negros: Silvério Pereira, Rufino dos Santos,
Felisbino Barbosa, Horácio da Cunha, Benedito Costa e Benedito Prestes.
A
finalidade era promover a prática tanto do futebol quanto do atletismo. Suas
cores eram o preto e o branco. Ao longo do tempo, seus investimentos maiores foram
sempre no futebol. O clube teve sedes na Barra Funda e depois em Perdizes.
Praticar
o futebol já naquela época custava caro. Parte do material usado no esporte, tais
como bolas, meias, calções, luvas, joelheiras e tornozeleiras era tudo importado.
Não
se tem ideia de como o São Geraldo conseguia enfrentar tais despesas. É
provável que a sua principal fonte de recursos derivava das mensalidades dos
sócios.
Outras
prováveis fontes de renda vinham de donativos e da arrecadação das festas e
bailes.
Anos
mais tarde, Dionísio Barbosa – o fundador e principal dirigente do “Cordão Carnavalesco
Camisa Verde”, disse que cedia o salão da agremiação ao São Geraldo, para que
este realizasse bailes para arrumar dinheiro, para comprar camisas. E os
jogadores do São Geraldo, por sua vez, retribuíam fazendo a proteção dos bailes
do “Camisa Verde”.
O
clube foi criado pelos “negros da Glette”, um grupo que se encontrava na “Alameda
Glette”, próximo à linha férrea. Não tinham habilidades artesanais que os favorecessem
profissionalmente, nem dominavam um ofício, por isso trabalhavam como
carregadores e ensacadores. Por vezes viviam à margem da ordem social vigente.
Eram
respeitados pela sua força física, daí terem recebido a alcunha de “valentes da
Barra Funda”. Todavia, as informações fragmentadas disponíveis não permitem
tecer detalhes acerca da origem do São Geraldo.
Além
do caráter recreativo, o São Geraldo também se inseriu na rede de
associativismo negro que, a partir do início do século XX, floresceu em São
Paulo. Foram criadas dezenas de associações voltadas para fomentar as
atividades recreativas, culturais, políticas e sociais dos autodenominados
“homens de cor”.
Eram
entidades “dançantes”, “recreativas”, “dramático recreativas”, “dramático
recreativa e literária”, “dramático recreativa literária e beneficente”, “beneficente
e humanitária, recreativas e esportivas”, ou exclusivamente “esportivas”.
Apesar
das diferenças de nomes, essas associações buscavam o desenvolvimento de uma
identidade específica, de negros (nós), em oposição aos brancos (eles).
O
São Geraldo surgiu na Barra Funda, bairro onde existia um importante segmento
da “população de cor”, vinda na maioria de pequenas cidades do interior do Estado.
Essa gente vinha à Capital em busca de emprego e melhores condições de vida no
pós-abolição.
Era
o tempo da fartura do café nas lavouras paulistanas. Na Barra Funda, foram
construídos, além da estação ferroviária, grandes armazéns para estocar
especialmente o produto.
A
mão de obra básica era composta por negros, que realizavam as tarefas mais
penosas de carregamento e descarregamento de mercadorias, tanto nesses
armazéns, quanto naqueles situados no porto de Santos, para onde eles iam
sempre que escasseava o trabalho em São Paulo.
Já
as mulheres prestavam serviços como domésticas nas casas das famílias ricas da
cidade.
Quando
tinham um tempo livre os negros realizavam batuques em torno dos botequins da “Alameda
Glette”, rodas de samba, jogos de pernada, umbigada e tiririca (espécie de
capoeira) no “Largo da Banana” e comemoravam o Carnaval por meio dos grupos “Barra
Funda”, “Campos Elísios” e “Flor da Mocidade”, cordões carnavalescos pioneiros
em São Paulo.
A
Barra Funda era na verdade um dos maiores “territórios negros” da cidade, nas
primeiras décadas do século XX. Na parte alta do bairro, próximo ao Bom Retiro,
os terrenos baldios existiam em profusão, sendo usados por essa população, nos
primórdios do futebol.
A
entidade organizou seus estatutos, registrou em cartório e criou uma estrutura funcional
alicerçada em uma Diretoria, associados e atividades. Sua primeira sede foi Rua
Barra Funda, mais tarde transferida para a Rua Florêncio de Abreu.
Aos
poucos o time de futebol, cujo uniforme tinha as cores preta e branca, foi se
estruturando até se filiar à Associação Paulista de Esportes Atléticos (APEA) –
encarregada de organizar o futebol no Estado – e disputar o campeonato da
chamada “Divisão Municipal”, que reunia uma série de clubes de várzea.
Não
demorou para o clube ganhar destaque em meio aos negros. Tinha no time bons
jogadores, como Zelão, Tita, Africano, Filipão, Olavo, Caçaróla, Pé, Buiú,
Alfredo, Goiabada, Bizerrão, Caetano, Vaca Braba, Bode e Hilário, que protagonizaram,
na “zona Pacaembu, jogos de escol”.
Também
merecem ser lembrados Carlos Campos, o “famoso beque” Sarará, o atacante
Ditinho – considerado um dos craques do time – e o “meia esquerda” Paulo, que foi
uma figura brilhante.
Ao
longo de sua trajetória, o “alvinegro” da Barra Funda colecionou resultados
positivos dentro dos gramados, sendo o principal deles a conquista da “Copa do
Centenário da Independência do Brasil” – nome dado ao campeonato paulista de
1922 –, evento que fez parte das comemorações alusivas aos 100 anos da
emancipação política do Brasil.
Tratou-se
de uma competição bastante disputada. O São Geraldo, clube constituído “somente
de elementos de cor”, enfrentou na final o Flor do Belém, time “formado por
brancos” e considerado favorito ao ambicionado título.
A
decisão do “Campeonato do Centenário” se deu no “Estádio da Floresta”, num
domingo de Páscoa.
Com
a conquista do título, o “alvinegro” da Barra Funda tornou-se mais conhecido em
São Paulo, especialmente no meio negro, legitimando-se como o principal time de
futebol do gênero.
Além
de disputar o campeonato da APEA, o São Geraldo costumava jogar contra outros
clubes de negros. Um dos grandes rivais do São Geraldo localizava-se justamente
no mesmo bairro. Era o time de futebol do Grêmio Barra Funda, com o qual
disputou partidas memoráveis.
Em
abril de 1926, o “Grêmio Recreativo Nem que Chova” abriu as inscrições de um
“festival esportivo”, planejando reunir 10 times de futebol do meio negro no
campo do “Paulista de Aniagens”, situado na Rua Glicério. Como premiação,
previa-se distribuir “duas ricas taças”.
O
“festival” ocorreu no dia 9 de maio daquele ano e, ao que parece, contou com a
participação do São Geraldo. Já no ano de 1932, o time ganhou a “Taça Clarim
d’Alvorada”, troféu de campeão entre as agremiações esportivas negras, que existiam
na capital.
Também
os intercâmbios do “alvinegro” da Barra Funda ocorreram com os clubes do
interior paulista. Em agosto de 1929, a equipe viajou até a cidade de Campinas,
para enfrentar a Ponte Preta, que venceu por 4 X 2.
Em
algumas vezes o São Geraldo jogou torneios e partidas amistosas contra adversários de outros Estados, em
especial do Rio de Janeiro.
Em
1925, ocorreu uma crise na organização do futebol paulista, o que levou o Clube
Atlético Paulistano a abandonar a APEA e decidir criar a Liga de Amadores de
Futebol (LAF).
Seu
gesto foi acompanhado imediatamente pela Associação Atlética das Palmeiras e
pelo Sport Club Germânia. A nova associação nasceu com o propósito de “depurar”
o futebol e incrementar a prática do esporte sobre as bases do “mais restrito
amadorismo”.
Tanto
a APEA quanto a LAF reivindicavam para si o direito de representar oficialmente
o futebol do Estado de São Paulo. Neste cenário, o São Geraldo aderiu à nova
associação, disputando o campeonato da divisão “intermediária”.
Convém
lembrar que, nessa época, não havia lei de acesso. Os nove times considerados
grandes: Club Atlético Paulistano, Sport Club Germânia, Sport Club Corinthians,
Associação Atlética das Palmeiras, Britânia Atlético Clube, Clube Atlético
Santista, Antártica Futebol Clube, Clube Atlético Independência e Paulista
Futebol Clube, que compunham a divisão mais importante da LAF, jogavam entre si
e não corriam o risco de rebaixamento.
Já
o São Geraldo jogava contra os clubes menores, muitos dos quais egressos do
futebol de várzea. E mesmo que aí se destacasse, não havia a perspectiva de
ascender à divisão principal.
A
imprensa negra costumava acompanhar o desempenho do São Geraldo: “A Associação
Atlética São Geraldo é uma das agremiações de homens pretos que, no esporte,
tem sabido honrar sobremaneira o nome do negro brasileiro”.
Segundo
jornal “O Clarim d’Alvorada”, o São Geraldo fechou a competição de 1929 de “um
modo brilhante e digno de todos os encômios”. Basta dizer que, no decorrer do
ano, seu “quadro” não sentiu o gosto da derrota. Os “jogadores não sofreram a
menor pena ou censura, em se tratando de disciplina”.
Aquele
foi o último campeonato que o São Geraldo disputou na LAF.
Lentamente,
os times foram regressando à APEA. Foi o caso do Sport Club Corinthians, que
ajudou a erguê-la em 1925, e retornou à APEA em 1927, tendo nela participado de
apenas um campeonato. Ao todo, a LAF organizou três campeonatos paulistas,
extinguindo-se em 1929.
O
insucesso da entidade deveu-se basicamente à sua insistência em manter o
futebol amador. Enquanto isso, a APEA, que na teoria preconizava o amadorismo,
na prática deixava que clubes e jogadores experimentassem o profissionalismo.
Não
tardou para que os melhores jogadores da entidade dissidente começassem a se
transferir para as equipes da APEA. Os que lá permaneceram, com raras exceções,
não desejavam mesmo se profissionalizar como futebolistas.
Foi
neste contexto que o São Geraldo elegeu uma nova diretoria e voltou a se
afiliar à APEA, participando de suas competições. Mas, naquela altura, o clube
da Barra Funda já não era o mesmo.
Pouco
a pouco entrou em crise, enfrentou tensões internas e se desarticulou
coletivamente. Sem resultados expressivos dentro de campo, restava viver de um
discurso saudosista. Não é possível assegurar, quando o time encerrou as suas
atividades, mas parece que foi na primeira metade da década de 1940.
O
insucesso do São Geraldo deveu-se basicamente à sua insistência em manter o
futebol amador – condição na qual os jogadores ficavam desprovidos de salário,
vínculo formal e não conseguiam viver exclusivamente do futebol.
Conforme
revelou “A Voz da Raça” em julho de 1933, “os principais clubes de futebol aos
poucos iam reformando seus estatutos e entre cláusulas abolidas figurava sempre
a que proibia a entrada de homens de cor”.
Para
o veículo de comunicação “oficial da Frente Negra Brasileira”, o jogador
símbolo do “ingresso do negro nos altos cenários” do futebol foi Mateus
Marcondes.
O
“másculo” atleta do Clube Espéria teria sido a última “figura a aparecer
vitoriosamente em nossos esportes, vencendo e convencendo aos paredros do
futebol bandeirante”.
Muitos
clubes da primeira divisão do futebol paulista passaram a “recrutar” jogadores
negros na década de 1930. Isto não significa que tenham cessado as denúncias de
que tais jogadores, embora elevassem o nome das agremiações desportivas, eram
aceitos apenas como atletas e não como sócios.
Seja
como for, emergiu um fenômeno novo: alguns dos melhores jogadores negros
migraram para os grandes clubes. Bianco, o famoso “gorrinho encarnado” do
Sul-América, transferiu-se para a Associação Atlética das Palmeiras.
Talvez
o caso mais emblemático tenha sido Petronilho de Brito, um típico jogador da
várzea paulistana que, na concepção de Thomaz Mazzoni, trouxe pioneiramente
para o “futebol dos grandes clubes o verdadeiro futebol da raça negra”.
Quem
um dia descobriu o São Geraldo foi o Corínthians. Começou a passar a mão nos
negros devagarinho, tirou um, tirou outro e destruiu o São Geraldo.
O
São Geraldo, continuou a ser evocado no meio negro como o “Campeão do
Centenário”. Dada a importância do acontecimento, devia ser celebrado,
rememorado e transmitido de geração para geração, para não cair no
esquecimento.
Em
1948, ao recordar os “maiores feitos do futebol brasileiro”, a folha “Mundo
Esportivo” mencionou o título do São Geraldo de campeão do Centenário da
“Divisão Municipal”.
A
esse respeito, o “Clarim d’Alvorada” já tinha sido bem incisivo em sua edição
de 26 de julho de 1931: “o São Geraldo é um clube que honra a coletividade
negra no futebol paulista”.
Para
muitas “pessoas de cor”, o São Geraldo era uma fonte de orgulho racial. Na
prática desportiva, constituía uma espécie de sismógrafo do quanto o negro era
perseverante, dotado de disciplina e qualidades físicas, aliadas à inteligência
e competência para alcançar os pináculos da vitória e se impor perante os
desafios da vida (e da nação), colocando em xeque a ideologia de sua
inferioridade racial. (Pesquisa: Nilo Dias – Fonte maior: “Verminosos por Futebol)
O
São Geraldo sagrou-se campeão municipal do centenário, em 1922 (Foto:
Cacellain)
Nenhum comentário:
Postar um comentário