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sexta-feira, 31 de outubro de 2008

O preço de uma paixão

Quem não sonhou em um dia ganhar na loteria? Com certeza, todo o mundo. É a oportunidade que se tem para a realização de quase todos os desejos. Mas não é nada fácil. O cearense José Antônio Abílio de Lima foi uma dessas raras pessoas bafejadas pela sorte. Em 1977 ele ficou milionário, graças a uma de suas filhas, Maria José, que na época tinha 14 anos e acertou os 13 jogos de um concurso da Loteria Esportiva, recebendo um prêmio de 3,7 milhões de cruzeiros, o equivalente hoje a 2,5 milhões de reais.

José Abílio nunca fora um homem de muitas posses. Garantia o sustento da família com uma pequena banca onde recolhia apostas lotéricas, que levava para Fortaleza uma vez por semana. Naquela época ainda não havia nenhuma agência lotérica em Quixadá, cidade distante 168 quilômetros da capital. Muito apegada ao pai, a filha Maria José, carinhosamente chamada de “Mazé” gostava de passar os dias na banca brincando de preencher cartões de apostas. Um dia, a menina insistiu para fazer um jogo de verdade, e o pai acabou concordando.

E qual não foi a surpresa de José Abílio ao conferir a aposta: sua filha havia sido a feliz contemplada com o prêmio milionário. Maria José, hoje com 45 anos de idade e professora em uma escola pública de Fortaleza, disse que marcou os resultados de forma aleatória, pois não entendia nada de futebol. Se entendesse um pouquinho só, certamente não teria marcado empate no jogo entre as seleções do Brasil X Colômbia, uma verdadeira zebra.

Como Maria José era menor de idade, o dinheiro foi para a conta de seu pai, que não perdeu tempo e no dia seguinte comprou um sítio na zona rural de Quixadá, algumas casas, um carro e abriu uma agência lotérica na mesma rua da antiga banca. Com todo aquele dinheiro José Abílio poderia ter oferecido uma vida de luxo para sua família. Mas não foi assim. O investimento em bens ficou só naquilo.

Ninguém em sã consciência jamais poderia imaginar que José Abílio iria gastar quase toda a fortuna num time de futebol. Mas foi o que aconteceu. A paixão pelo Quixadá Futebol Clube, time do qual era o presidente falou mais alto do que qualquer outra coisa. A voz da razão não conseguiu ser ouvida. Paixão é um sentimento que impede de se raciocinar com a lógica, é amor ardente e violento, sentimento profundo. É o amor obsessivo, é o amor que se desequilibra. Só isso pode explicar o que aconteceu.

A fortuna inesperada não fez de José Abílio um homem diferente do que sempre foi, permanecendo humilde e amigo de seus amigos. Era comum vê-lo pelas ruas da cidade calçando chinelas japonesas e pedalando a inseparável bicicleta.

José Abílio era fanático por futebol. Não conseguia se concentrar no trabalho, o Quixadá ocupava seus pensamentos e era sua principal prioridade. Ele era tão louco por futebol que assistia a um jogo pela TV e ouvia outro no rádio.

Com José Abílio no comando o Quixadá viveu dias inesquecíveis. Ele contratou muitos jogadores de nome, entre os quais o atacante Cícero Ramalho, que foi artilheiro do campeonato Cearense de 1988, comprou uma casa para a sede do clube, mandou confeccionar novos uniformes, alugou o melhor ônibus da região para as viagens do time e pagava de seu próprio bolso toda a folha salarial do clube.

No início da década de 1990 quando quase todo o dinheiro da loteria já havia sido gasto com o futebol, José Abílio descobriu que tinha câncer de próstata. Para custear o tratamento teve de vender alguns bens e recorrer aos amigos. Ele morreu em 1993, aos 69 anos de idade. A filha Maria José, que marcou o cartão de loteria premiado, garante que nunca se sentiu frustrada pelo fato do pai ter gasto quase todo o dinheiro com o Quixadá F.C. Ela conta que muita gente criticou, mas o sonho que ele realizou foi o maior prêmio. Para conquistar o apoio de “Mazé”, José Abílio a presenteou com uma coleção de discos de Roberto Carlos.

Os demais integrantes da família também não guardam nenhum tipo de ressentimento pelo destino dado ao dinheiro, embora admitam que a gastança com o futebol tenha provocado alguns atritos em casa. Ninguém sabe ao certo quanto ele gastou com o Quixadá. A viúva, Antônia Azevedo de Lima, guarda vários recortes de jornais sobre o marido e até uma enciclopédia que aborda sua importância na história do Quixadá. A maior relíquia são os canhotos do depósito de 3,7 milhões de cruzeiros do prêmio da loteria esportiva.

Dos cinco filhos do casal, duas mulheres são professoras e as outras duas donas de casa. O único filho homem, José Azevedo Lima trabalha como servidor público em Quixadá.

Quando vai a Quixadá, “Mazé” costuma visitar a agência lotérica que foi de seu pai, e nunca falta alguém para pedir que preencha alguns cartões. O povo pensa que, porque ela ganhou uma vez, vai ter sorte a vida inteira. A agência não pertence mais à família e, se José Abílio ainda fosse vivo certamente ficaria triste, porque agora escudos do Ceará e Fortaleza dominam o local.

Em 1996, três anos depois da sua morte, a Câmara Municipal de Quixadá deu ao estádio da municipalidade o nome de José Antônio de Lima, o “Abilhão”, como é carinhosamente chamado, uma justa homenagem a um desportista que colocou a paixão pelo clube do coração acima de qualquer coisa. O estádio de Quixadá, com capacidade para receber 5 mil torcedores é conhecido em todo o país por ter sido recordista na mudança de nome. Foi inaugurado em 1968 com o nome de Luciano de Queiroz. Depois a Câmara de Vereadores mudou o nome para José Baquit, mais tarde para Estádio dos Imigrantes, novamente para Luciano Queiroz e, finalmente, para o nome atual de José Antônio Abílio de Lima.

O presidente da Câmara Municipal de Quixadá, Cristiano Góes, afirma que não haverá mais troca de nome do Estádio. Ele explica que na atual legislatura foram feitas mudanças no Regimento Interno da Casa que não permitem mais essa prática. Agora tudo terá que passar por um rigoroso processo junto a população da cidade.

Dinheiro posto fora a parte, José Abílio foi muito diferente da maioria dos “cartolas” que comandam o futebol brasileiro nos dias de hoje. Ele nunca usou o clube para tirar alguma vantagem. Nunca almejou cargos públicos, nem retorno financeiro, até porque o clube nunca teve uma grande torcida. Ele era simplesmente maluco pelo Quixadá, e gastar dinheiro com o time era o seu vício. Toda a família concorda em uma coisa: se não ganhasse na loteria, ele teria gasto o dinheiro que tinha com o time, do mesmo jeito. Quando ganhou na loteria, ele pôde alimentar sua paixão. (Pesquisa: Nilo Dias)
José Antônio Abílio de Lima gastou grande parte de um prêmio da Loteria Esportiva, com o time do Quixadá do Ceará (Foto: Acervo da Família)