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terça-feira, 14 de abril de 2009

A história do goleiro malabarista (1)

As origens do futebol no Brasil não são populares, pelo contrário. Era só a elite que o praticava nos primeiros tempos, não dando lugar a pobres e principalmente a negros. Era, portanto um esporte elitista e racista, que com o passar dos anos deixou os salões da alta sociedade e chegou às camadas mais populares da população, conquistando rapidamente uma legião de novos e entusiasmados adeptos, que passaram a disputar partidas em campos improvisados em praças, parques e terrenos baldios.

Esses tempos difíceis de transição, principalmente antes da profissionalização oficial, em 1933, foram marcados pelo surgimento de lendários personagens, dos quais se contam muitas histórias. Hoje, é quase impossível saber o que é verdade ou o que é lenda.

Nesse contexto se insere “Jaguaré”, registrado como Jaguaré Bezerra de Vasconcelos, nascido no Rio de Janeiro em 14 de maio de 1905. Mas existem divergências em relação à data real de seu nascimento: algumas fontes apontam para o dia 14 de julho, outras para o 14 de maio. E também o ano, que poderia ser 1900 ou 1905. O próprio jogador ignorava o dia em que nasceu. Filho de Antônio Bezerra Vasconcelos e Raimunda Tavares de Vasconcelos cresceu na pobreza e passou a maior parte da sua infância na zona portuária carioca.

Ainda na adolescência começou a trabalhar de estivador no cais do porto. Foi dessa época, antes mesmo de se tornar jogador de futebol, que surgiram os primeiros fatos ou lendas em torno de seu nome. Diziam que cada vez que estufava o peito para segurar com apenas uma mão, sacos de 50 kg de farinha de trigo, destinadas ao Moinho Inglês, de quem era empregado, havia sempre uma enorme assistência para bater palmas.

Nas horas de folga Jaguaré gostava de jogar peladas nos campos de várzea do bairro da Saúde, onde era conhecido pelo apelido de “Dengoso”. Também jogou no Atlético Santista, time amador, de 1926 a 1927, até que em 1928 foi descoberto pelo zagueiro Espanhol, que o levou para fazer testes no Vasco da Gama. Ao chegar no estádio deixou a pior das impressões, calçava tamancos e a camisa estava para fora da calça, um ultraje para a época.

Mesmo assim ele participou do treino e fechou o gol, não permitindo que o ataque titular o vencesse uma única vez. Aprovado pelo técnico Welfare, foi imediatamente inscrito na Liga. Mas antes o Vasco teve que contratar um professor particular para lhe ensinar a assinar o próprio nome nas súmulas, pois era analfabeto. Valente e abusado, Jaguaré em pouco tempo se tornou um dos primeiros ídolos da torcida vascaína. A partir daí teve uma carreira fulminante. No mesmo ano de 1928, em que estreou no Vasco, tornou-se titular da seleção brasileira. Em 1929 foi campeão carioca.

Jaguaré era um verdadeiro “crianção”, sempre disposto a fazer molecagens, mesmo durante os jogos. Os torcedores adversários detestavam vê-lo realizar jogadas inusitadas, como rodar a bola ao estilo de malabaristas de circos, na ponta do dedo indicador depois de cada defesa, que muitas vezes fazia com uma só mão, inclusive nos pênaltis, segundo a lenda.

Em um jogo contra o América, Jaguaré quase matou de raiva o jogador Alfredinho. Primeiro, defendeu um chute do atacante americano somente com uma das mãos. Depois atirou a bola na cabeça deste para fazer nova defesa. Com tantas "molecagens", nada mais natural que os estádios enchessem com torcedores atraídos pela fama do goleiro vascaíno.

O escritor Mário Filho, no seu livro “O negro no futebol brasileiro”, conta que certa vez Jaguaré prometeu driblar o atacante Ladislau, do Bangu. Dito e feito: na primeira oportunidade deu um “tapinha” e encobriu o adversário, e quando este tentou roubar a bola levou outro lençol. Jaguaré finalizou a jogada girando a bola no dedo, como era seu costume.

Jaguaré não queria saber de “sombra” no Vasco, onde era titular absoluto. Mesmo assim não admitia a presença de outro goleiro que pudesse tomar seu lugar. Quando alguém se apresentava para fazer testes, logo ele o chamava para treinar tiro livre. Assim que o pretendente a arqueiro ficava no centro da meta, Jaguaré desferia um tremendo chute botando-o a nocaute.

Um dia desafiou Grané, dono de um dos chutes mais potentes do futebol brasileiro. Para se ter uma idéia do chute de Grané, ele ia bater um “off-side” dentro da pequena área e os companheiros pediam-lhe que chutasse devagar. Porque se ele chutasse com força a bola atravessava o campo e ia perder-se atrás do outro gol. O artilheiro colocou a bola na marca do pênalti e os torcedores aos gritos pediam que Grané chutasse para fora, pois poderia matar o goleiro.

Jaguaré saiu do gol e cuspiu na bola, como sempre fazia, o que servia para descontrolar o cobrador. Quando o juiz apitou muitas pessoas viraram o rosto para não assistir a cena que poderia ser trágica. O chute partiu, Jaguaré pulou e segurou a bola, levantou-se e a rodou na ponta do dedo, assistindo a torcida em delírio gritar seu nome.

O Vasco, ainda na época do amadorismo, foi um dos primeiros clubes que reforçou seu time com jogadores negros. Em 1929, a equipe foi campeã carioca com um time inesquecível: Jaguaré – Brilhante – Itália – Tinoco – Fausto – Mola – Pascoal – Santana – Russinho - Mário Matos e 84.

Após uma década de tantas conquistas sociais e de diversos troféus, o Vasco tornou-se o segundo clube brasileiro a realizar uma excursão à Europa. Entre junho e agosto de 1931 disputou 12 jogos em gramados da Espanha e Portugal, que serviram como uma espécie de marco fundamental para o início da brilhante história internacional do clube. Antes, apenas o Paulistano (já extinto) havia jogado no “Velho Continente”, em 1925, quando realizou vários amistosos na França.

Quando foi convidado, o Vasco estava disputando o 1° turno do Campeonato Carioca daquele ano e havia aplicado, em abril, a maior goleada da história do confronto com o Flamengo, 7 X 0, em São Januário. Antigamente, as viagens eram feitas de navio e, por isso, acabavam sendo longas e cansativas. O Vasco viajou a Europa a bordo do navio “Arianza”.

Além dos notáveis Fausto, Pascoal e Russinho, um jogador que se destacou na excursão foi o goleiro Jaguaré. Folclórico como poucos, teve grandes atuações nos amistosos, sobretudo frente ao Benfica e ao Atlético de Madrid. Um detalhe interessante é que, para conquistar oito vitórias nos 12 jogos que disputou, o Vasco contou com os reforços de Nilo, Carvalho Leite e Benedito, atletas do Botafogo, e Fernando, do Fluminense.

Em Lisboa o clube brasileiro enfrentou o combinado Benfica-Vitória-Casa Pia. Lá pelas tantas, o juiz marcou um pênalti contra o time carioca. Ninguém gostou da marcação. Acalmados os ânimos, quando o centroavante Aníbal José se preparava para o chute, o jogador Fausto foi até a marca do pênalti e cuspiu na bola. Ninguém entendeu nada, muito menos o chutador, que bicou a bola por cima do travessão. O juiz mandou cobrar de novo. Fausto teria comentado para o goleiro Jaguaré que só estava “passando a saliva” na redonda.

O juiz mandou bater de novo. No momento em que o português Anibal José se preparava para o chute, Jaguaré jogou o boné sobre a bola. Perturbado, o cobrador errou novamente, mandando a bola por cima do travessão. O juiz mandou repetir a cena mais uma vez. Finalmente, já cansados do “lenga-lenga”, os brasileiros saíram de perto e Aníbal José fez o gol. Mesmo assim, o Vasco acabou vencendo por 4 X 2. (Pesquisa: Nilo Dias)