Boa parte de um vasto material recolhido em muitos anos de pesquisas está disponível nesta página para todos os que se interessam em conhecer o futebol e outros esportes a fundo.

terça-feira, 28 de abril de 2015

Carruíra, “El Maestro”

João Baptista Ferraretto, o “Carruira”, um dos grandes jogadores oriundos do futebol da cidade gaúcha de Rio Grande, sempre foi amador, e garantia que nunca recebeu dinheiro para jogar.

Em 1937 deixou o S.C. Rio Grande e foi para o F.B.C. Rio-Grandense, juntamente com “Cazuza”. E fato curioso, o seu novo clube, que desde 1921 não vencia um certame, conquistou os campeonatos de 1938, 1939 e 1940.

Em 1944 retirou-se dos gramados, voltando em 1946 como técnico do Rio-Grandense. Sua atuação como treinador foi a mais proveitosa, pois conseguiu levar o time ao vice-campeonato estadual, com um time formado em parte por jogadores que foi buscar na várzea.

O Rio-Grandense bateu o Brasil, de Pelotas, o Floriano, de Novo Hamburgo e o Grêmio Santanense. Faltava o Grêmio, de Porto Alegre, mas como os tricolores constituíam a base do Selecionado Gaúcho em organização, a decisão do Estadual foi deixada para depois do Campeonato Brasileiro, em 1947.

Entrementes, “Carruira” foi dispensado da direção técnica. “Essa foi a grande gratidão ao meu trabalho”, desabafou ele, na época. E quando o Rio-Grandense, no início de 1947 voltou ao certame com novo técnico, foi eliminado pelo Grêmio, que assim, obteve o Campeonato Estadual de 1946.

“Carruira” disse que nunca se emocionou tanto no futebol, como quando conquistou o Campeonato Riograndino de 1922, pelo General Osório, que venceu o São Paulo por 3 X 1. “Carruíra” marcou um gol, e seu irmão, “Carruirão”, os outros dois.

“Carruíra” ganhou os títulos de Campeão do Estado, em 1936, pelo S.C. Rio Grande; em 1939, pelo F.B.C. Rio-Grandense, clube que lhe deu também os vices-campeonatos estaduais de 1937 e 1938 e, como técnico, de 1946. Foi ainda campeão de Rio Grande em 1922, pelo General Osório.

Nos 25 anos em que atuou por equipes das Divisões Principais do Estado, um recorde dificil de ser batido, conheceu grandes jogadores: Fruto, no S.C. Rio Grande; Mário Reis, no S.C. Pelotas e Lara, no Grêmio Portoalegrense.

O jornal “O Tempo”, de Rio Grande, edição de 30-12-1949, publicou a seguinte legenda, em uma fota de “Carruíra”: “Eis o maior de todos! A maior glória do S.C. Rio Grande, no tempo do esplendor do futebol papareia. Quando “Carruíra” aparecia em campo, milhares de olhos convergiam para a sua figura, que durante o jogo era um astro brilhando demais entre os outros”. (Matéria publicada no extinto jornal “Diário de Notícias”, de Porto Alegre e nos enviada pelo pesquisador Douglas Marcelo Rambor, de Três Coroas-RS.)

Também me vali do amigo Luiz Ernesto Ferraretto, sobrinho de "Carruíra", riograndino de nascimento e que reside há mais de 35 anos em Canoas (RS) e que gentilmente me passou valiosas informações. Ele tem 60 anos de idade, e como não poderia deixar de ser é um apaixonado por futebol, torcedor gremista e do “veterano” Sport Club Rio Grande, o time mais velho do futebol brasileiro em atividade.

Luiz Ferraretto chegou a jogar nos juvenis do “tricolor” riograndino em 1971, mais para manter uma tradição familiar, do que para fazer carreira. Para minha alegria, ele conta que chegou a ler artigos e matérias que publiquei nos antigos jornais “Folha da Manhã” e ”Folha da Tarde Esportiva”, nos tempos em que trabalhei na Empresa Jornalística Caldas Júnior, Sucursal de Rio Grande.

E também já visitou meus blogs www.nilodiasreporter.blogspot.com e www.reliquiasdofutebol.blogspot.com o que me deixa mais feliz, ainda. Conta que sabe de algumas coisas interessantes dos bons tempos do futebol riograndino, em especial de 1963 a 1968, quando o S.C. Rio Grande tinha um grande time. Costumava ir aos jogos com o seu pai e diz ter muitas saudades dos estádios “Arthur Lawson” e “Torquato Pontes” lotados e das narrações vibrantes do Paulo Corrêa e do Volni Dutra.

A família Ferraretto era toda muito ligada ao S.C. Rio Grande. Não perdiam por nada a tradicional “ceia veterana“, onde anualmente é celebrado o aniversário do clube e até hoje é realizada. Embora ainda “guri”, Luiz ia ao evento junto de seu pai e do seu tio.

E nas andanças pelo futebol daqueles anos memoráveis, teve a oportunidade de conhecer o famoso zagueiro “Fruto” e o inesquecível centro-médio “Tocco”, que foram ídolos do “veterano” e campeões gaúchos de 1936, num passado mais distante. Eles estavam sempre no antigo pavilhão do “Estádio das Oliveiras” como torcedores.

Também lembra de outro campeão, Ernestinho Ernest, que era vizinho dos Ferrarettos, que moravam na rua Francisco Marques e ele na Barão de Cotegipe. O velho “Chinês”, pai do craque “Chinesinho” e o seu Pesce, remanescentes de 1936, tinham uma casa de revistas, “A Gioconda”, parece que na Andradas ou Zalony.

O craque Mário Reis, do E.C. Pelotas frequentava a casa de primos de seu pai, Zeferino, em Pelotas. Todos eram amigos. E muitas vezes iam juntos assistir jogos da “Divisão Especial”, fosse em Rio Grande ou pelo interior, em excursões.

Até hoje Luiz lembra do primeiro jogo do Rio Grande que assistiu. O clube recém havia ganho o “Torneio da Morte”, da 2ª Divisão de Profissionais, contra o São José, de Porto Alegre,  em 1962. Foi em 1963, vitória de 5 X 2 frente o então Floriano, de Novo Hamburgo. O Nico, que na época jogava no “tricolor” fez dois ou três gols, se lesionou e tempos depois foi para o Rio-Grandense.

Em seu Lugar entrou Alcindo, o “Bugre”, emprestado Pelo Grêmio. No retorno ao clube da capital fez grande sucesso, inclusive participando de uma Copa do mundo pela Seleção Brasileira, em 1966, na Inglaterra. O time “veterano” era este: Caetano – Motini – Galego - Kim e Pedro - Lambari e Jadir – Celmar – Jesus - Alcindo e Luisinho. Um timaço, que acabou em 5° lugar no “Gauchão”.

Voltando ao foco principal deste artigo, Luiz Ferraretto conta que os “Carruíras” eram quatro, seu pai, Zeferino Luiz Ferraretto, volante, ou center half como era chamado no passado, os tios Vitor Modesto, goleiro, Arthur, meia atacante e João Baptista, atacante.

O “Carruira” que ganhou fama foi João Baptista Ferraretto, chamado de “El Maestro”, campeão estadual pelo Rio Grande em 1936 e pelo Rio-Grandense, em 1939.

Luiz conta coisas que ouviu do próprio tio. João Baptista Ferraretto, o “Carruíra”, nasceu em Rio Grande, no dia 22 de novembro de 1906. Filho do imigrante italiano, natural de Schio, Ernesto Ferraretto e de Fortunata Enderle Ferraretto. Era o terceiro, de nove irmãos, quatro homens e cinco mulheres.

Cresceu na Avenida Rheingantz, onde sua família residia no prédio de número 60, uma das casas que eram ocupadas pelos funcionários da tecelagem onde seu pai trabalhava como mestre-tecelão.

Os quatro irmãos Ferraretto, apelidados de “Carruíra” iniciaram a prática do futebol no General Osório, clube que dominava o futebol riograndino nas décadas de 1920 e 1930. O “Carruíra” que se tornou famoso, tinha apenas 15 anos. Em 1924 foi para o Rio Grande.

Quem os viu jogar dizia que o craque da família era o Arthur, dois anos mais velho que o João Baptista, mas que por problemas de saúde não conseguiu projeção no meio esportivo.

Vitor foi excelente goleiro e Zeferino Luiz, um "center-half" de grande categoria, 10 anos mais novo que o irmão famoso. Todos tiveram passagens pelo Sport Club Rio Grande e pelo Foot-ball Club Rio-Grandense.

“Carruíra”, atacante nato e goleador, já brilhava como exímio cobrador de faltas e pênaltis. No final desse ano transferiu-se para o Rio-Grandense, onde não foi feliz. Um fato inusitado aconteceu com ele em 1925.

Caçado durante todo o jogo num clássico contra o São Paulo, pelo campeonato citadino, quando o seu marcador lhe bateu bastante, terminada a partida, dirigiu-se ao agressor para cumprimentá-lo e quando o mesmo ficou a altura da mão, desferiu-lhe um soco, o que acabou ocasionando uma pancadaria generalizada que lhe rendeu um ano de suspensão.

Em 1927, cumprida a suspensão retornou ao Rio Grande, onde jogou até 1937, tendo sido campeão gaúcho em 1936, num time recheado de craques que contava com Munheco - Fruto e Cazuza - Juvêncio - Sanguinha e Tocco – Ernestinho – Marzol (Souza) – Carruíra - Chinês e Pesce.

Nesse mesmo ano de 1936, começou a ser criada a lenda de que “Carruíra” nunca errou um pênalti. Foi num jogo, no velho estádio das “Oliveiras”, contra a seleção carioca que tinha craques como Zarzur, Afonsinho, Roberto, Carvalho Leite, Feitiço, Patesco e Leônidas Da Silva, o “Pelé” da época, que dois anos mais tarde estariam na Copa da França (1938).

Essa partida por anos afora passou a constituir uma das glórias do Sport Club Rio Grande. No centro do país ninguém da crônica quis acreditar: o time carioca, com mais da metade da Seleção Brasileira apenas conseguiu um empate em 1 x 1, com o S.C. Rio Grande.

Mas a história daquele jogo, que fez vibrar a cidade foi entremeada de lances folclóricos. Tudo começou quando o Rio Grande abriu o escore com dupla cobrança de pênalti por “Carruíra”. O relato do fato consagrou o nome do jogador.

As reclamações dos cariocas surgiram bem antes da cobrança, pois segundo eles não houvera pênalti. Mas a grande encrenca viria após a primeira cobrança. “Carruíra” cobrou, o goleiro "Panela" defendeu e o árbitro tranquilamente apontou para o meio de campo.

“Não viemos aqui para sermos roubados, gritavam os cariocas. E o juiz, imperturbável, confirmou: “Foi gol. O goleiro de vocês defendeu dentro do gol. Bola ao centro”. Seguiu-se um “foi, não foi”, até que o juiz no auge da irritação deu o assunto por encerrado.

“Foi gol e não se fala mais, porque o “Carruíra” nunca errou um pênalti. Irritados com a posição do juiz, os cariocas queriam se retirar de campo e temendo isso, os dirigentes do Rio Grande sugeriram que o pênalti fosse batido de novo.

O juiz aceitou e avisou: “Vai dar no mesmo, “Carruíra” nunca erra”. Dessa vez o goleador correu para a bola e estufou as redes. Ele era mesmo infalível. Carvalho Leite empatou para os cariocas. Faltando 10 minutos para terminar a partida, o juiz marcou novo pênalti contra os cariocas, que ameaçaram outra vez deixar o campo.

A torcida vaiou e pediu a continuação da partida. O presidente do Rio Grande, num ato de cavalheirismo, mandou que o pênalti fosse cobrado para fora. Alguém muito previdente, alertou: “Presidente, não manda o “Carruíra” bater, porque ele nunca erra...” Marzol foi o encarregado da cobrança e como não tinha a tradição de batedor infalível, chutou para fora e o jogo terminou empatado.

“Carruíra” ficou no Rio Grande até 1937, quando se transferiu novamente para o Rio-Grandense onde foi campeão estadual em 1939,  num time que contava com Brandão - Cazuza e Armando – Martinez - Pacheco e Mariano – Osquínha – Cardeal – Carruíra - Chinês e Plá.

Encerrou a carreira em 1944, aos 38 anos de idade. Depois dirigiu técnicamente o F.B.C. Rio-Grandense. E ainda foi durante muitos anos chefe das Oficinas de Manutenção da extinta Viação Férrea do Rio Grande do Sul, onde aposentou-se

Foi casado com a uruguaia Adalila Saavedra Ferraretto, com quem teve dois filhos, que também foram conhecidos como “Carruíra”. Carlos Jorge, o “Carlinhos”, foi ponteiro direito do Rio-Grandense e João Alberto, atacante do Rio Grande e Juventude de Caxias do Sul, na década de 50. Os dois já faleceram.

“Carruíra” até os últimos dias de sua vida acompanhava o futebol no radinho de pilhas, e era torcedor apaixonado pelo Grêmio, como toda a família Ferraretto. Diversas vezes foi convocado para a Seleção Gaúcha. Chegou a receber propostas dos clubes da capital e do centro do pais, mas nunca quis deixar Rio Grande.

Sempre dizia que o melhor jogador de futebol que viu jogar foi Mario Reis, atacante do Pelotas, na década de 30. Quiseram os deuses do futebol que “Carruíra” nos deixasse durante a “Copa do Mundo”, de 1982. Ele faleceu em 26 de junho daquele ano.

“Carruíra” foi uma figura carismática, que tinha frases sobre o futebol que se eternizaram: “Um time de futebol tem que começar pelo goleiro. Ele tem que ser o mais bonito do time”; “A bola tem que ser tratada com carinho, como se trata uma mulher; “Jogador do meio de campo que joga para os lados, não joga nada. Tem de erguer a cabeça, fazer o lançamento e deixar o atacante na cara do gol”; “Ponteiro tem que ir a linha de fundo e cruzar para trás, para pegar o atacante de frente para o gol e os zagueiros de costas”.


F.B.C. Rio-Grandense, de Rio Grande, campeão gaúcho de 1939. "Carruíra" é o terceiro agachado, contando da esquerda para a direita. (Foto: Arquivo de Nilo Dias)