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quinta-feira, 29 de dezembro de 2011

O Jogo da Morte (Final)

Em 17 de julho o Start enfrentou pela primeira vez uma equipe alemã e venceu por 6 X 0. E em 26 de julho derrotou pela segunda vez a Guarnição Hungara. Isso acabou com a paciência dos ocupantes alemães. Em 6 de agosto foi disputada uma partida entre Start X Flakelf, equipe integrada por vários pilotos de “Lutwaffe”, que pretendia manter uma invencibilidade da aviação nazista. O Start venceu por 5 X 1. E três dias depois os alemães pediram revanche.

Em meio a esse clima de guerra aconteceu aquele que não foi apenas um jogo de futebol. O que aconteceu no ano de 1942, em plena Segunda Guerra Mundial, foi um ato de heroísmo que envolveu um time de ucranianos formado em uma padaria e composto na sua maioria por jogadores do Dínamo Kiev. Em plena ocupação alemã, eles cometeram a loucura de derrotar a uma seleção de Hitler, no estádio local.

Em 6 de agosto voltou a derrotar o Flakelf, dessa feita por 5 X 3, o que foi considerado uma afronta para os representantes do Terceiro Reich. O jogo foi apitado por um integrante da SS e foi disputado no Estádio Zenit, com a presença maciça de policiais e tropas alemãs. Ao contrário do clima festivo dos jogos anteriores, esse foi marcado pela tensão. Soldados alemães lotaram os melhores lugares das arquibancadas, deixando os ucranianos espremidos no que sobrou de espaço. Guardas com cães se mantinham postados diante da torcida para garantir a "ordem".

Outro fato que mereceu destaque foi a escalação do Start feita pelo governo da ocupação. O F.C.Start, jogou com Trusevich – Klimenko – Sviridovsky – Sukharev – Balakin – Gundarev – Goncharenko – Chernega – Komarov – Korotkykh – Putistin – Melnik - Timofeyev e Tyutchev. Ao entrar em campo, a equipe recusou-se a fazer a saudação nazista para os soldados e oficiais de alta patente reunidos no estádio.

Os soldados do Flakelf saudaram a tribuna do alto comando com "Heil Hitler" e a multidão aguardou para ver o que os jogadores do Start fariam. A apreensão tomou conta. Todos quietos e os jogadores de cabeça baixa. Um a um, os braços foram erguidos. Os torcedores do Start estavam confusos. Mas quando todos os braços estavam no alto, os jogadores do Start os dobraram sobre o peito e gritaram: "FizcultHura!". O alto comando alemão ficou estupefato. Os torcedores ucranianos aplaudiram e a escolha do termo utilizado para saudação nada mais é do que vida longa ao esporte.

Todo o tipo de jogada violenta foi permitido, sem que o juiz marcasse falta contra os alemães. Até um gol com o goleiro lesionado foi validado. Mesmo assim o primeiro tempo finalizou com o placar de 2 X 1 para o time da padaria de Kiev.

O que se passou no intervalo do jogo, não se sabe com certeza. Mas o time ucraniano foi aconselhado a não vencer, com o argumento: "Vençam e morram, percam e sobrevivam". O preço da vitória seria muito caro, a vida de cada um deles. Mas os companheiros de Trusevich não se intimidaram e aceitaram pagar o preço exigido. Foram melhores em todo o segundo tempo.

Já com o resultado de 5 X 3, aconteceu uma cena que não poderia ser mais humilhante. Klimenko, um zagueiro, ficou parado na linha do gol, com o pé sobre a bola, após ter deixado para trás toda a defesa adversária, até mesmo o confuso goleiro, que engatinhava desesperado de volta às traves. O moço observava.

Quando todos esperavam o gol, o lance inesperado: com um sorriso indisfarçável, o atleta mirou o centro do campo e recolocou a bola em jogo. Castigava seu adversário não fazendo o sexto gol e mostrando que o Start não poderia ser derrotado. O árbitro soprou o apito final antes de completados os noventa minutos. E os refugiados do padeiro Josef, sabiam que esse atrevimento teria consequências.

No dia 16 de agosto, na semana seguinte ao jogo contra os alemães, o Start derrotou o Rukh novamente, desta vez por 8 X 0. Foi sua última partida. Com a alegação de que pertenciam à NKVD, polícia secreta soviética que havia financiado o Dínamo, a maioria dos jogadores foram presos e torturados. Alguns dizem que Kordik, o padeiro, foi o primeiro a morrer: torturado até a morte na frente dos jogadores.

A maioria do time foi mandada para o campo de concentração de Siretz, que era dirigido pelo Obersturmbahnfürer Paul Radomsky. Cruel, sádico, Radomsky era um assassino metódico: levava a cabo fuzilamentos todas as manhãs às seis horas e em seguida retornava para suas dependências, para tomar o seu desjejum. Ali, entregues a um militar doentio, padeceriam e, em sua maioria, morreriam parte dos jogadores do F.C. Start.

Korotkykh foi o primeiro jogador a morrer no campo de concentração, sob tortura. Ali também foram executados, em fevereiro de 1943, os jogadores Ivan Kuzmenko, Oleksey Klimenko, e o goleiro Nikolai Trusevich, que dizem ter morrido com a camisa do FC Start.

Goncharenko, Sviridovsky, e Tyutchev não estavam na padaria no dia fatídico, e viveram escondidos até a libertação de Kiev em novembro de 1943. Foram os principais responsáveis por tornar conhecida a história do FC Start.

Makar Goncharenko, relatou em 1992 que, usando sua camiseta vermelha e negra, o legendário goleiro gritou antes de morrer: “o esporte vermelho nunca morrerá”. Um dia antes havia ocorrido a histórica vitória soviética de Stalingrado. O princípio do fim do nazismo estava em marcha. Em 6 de novembro de 1943 Kiev foi libertada. Apenas havia 80 mil sobreviventes, dos mais de 400 mil que lá moravam em 1941.

O escritor mexicano Juan Villoro, impecável homem das palavras e um preciso observador do fenômeno do futebol, descreveu em seu livro "La historia del fútbol mundial”, muitos episódios emotivos e comoventes, mas seguramente nenhum tão terrível como aquele protagonizado pelos jogadores do Dínamo de Kiev, nos anos quarenta. Na morte deram uma lição de coragem, de vida e de honra, que não tem, por seu dramatismo, outro caso similar no mundo.

As homenagens aos heróis ucranianos vieram com o tempo. Foram feitos filmes e documentários, foram escritos livros e contos e se ergueram monumentos. Mas houve um modo de evocá-los para sempre: os possuidores de um ingresso daquela partida da morte tiveram direito perpétuo a um lugar gratuito nos jogos do Dínamo. Uma pequena homenagem a quem pôde assistir “aos jogadores que morreram com a cabeça levantada ante o invasor nazista”, como diz o monumento que honra os jogadores do Start.

O monumento em homenagem aos quatro heróis kievanos do F.C.Start, Nikolai Trusevich, Korotkykh, Ivan Kuzmenko e Alexei Klimenko está colocado numa praça em frente o estádio do Dínamo de Kiev. È uma estátua esculpida em um único bloco de granito de cerca de três metros de altura, na qual os quatro aparecem abraçados. Há poucos anos, os sobreviventes Goncharenko e Sviridovsky visitaram o monumento em honra aos colegas de time fuzilados.

O “Jogo da Morte” chegou aos cinemas de todo o mundo. O filme “Match”, conta a história do relacionamento entre o goleiro do Start (inspirado em Nikolai “Kolya” Trusevich, arqueiro morto no campo de concentração de Siretz) e uma professora de alemão, personagem sem inspiração real.

Para poder dar mais realismo às cenas e representar Trusevich, o ator principal, Sergei Bezrukov, treinou com o ex-goleiro do Benfica, Porto e seleção russa Sergei Ovchinnikov. Curiosamente, o próprio Nikolai Trusevich auxiliou um ator que protagonizou o filme soviético “O Goleiro”, de 1936, rodado em Kiev.

O filme mais famoso inspirado no “Jogo da Morte” ainda é “Fuga para a Vitória”, do premiado diretor americano John Huston. Na película, o jogo se passa em Paris e os prisioneiros de guerra são soldados aliados que planejam usar a partida para escapar. Entre eles, Pelé e outros jogadores famosos como o argentino Osvaldo Ardiles, o inglês Bobby Moore e o polonês Kazimierz Deyna, os dois últimos já falecidos. Sylvester Stallone faz o papel do goleiro. O filme é considerado dos melhores já produzidos com o futebol como tema.

Ao contrário da versão hollywoodiana, o primeiro filme estrangeiro baseado no “Jogo da Morte” passou longe de ter um final feliz. “Two Half Times in Hell” (“dois tempos de jogo no inferno”, em inglês) é o nome da película dirigida por Zoltán Fábri em 1961 e que conta a história de um time de prisioneiros húngaros convocados para enfrentar uma equipe de alemães em comemoração ao aniversário de Adolf Hitler durante a II Guerra Mundial. Assim como o Start, eles são aconselhados a perder, mas ganham a partida. No filme húngaro, porém, os vencedores acabam tragicamente executados ainda no campo de jogo. (Pesquisa: Nilo Dias)

Os sobreviventes Goncharenko e Sviridovsky visitaram o monumento.