Boa parte de um vasto material recolhido em muitos anos de pesquisas está disponível nesta página para todos os que se interessam em conhecer o futebol e outros esportes a fundo.

sexta-feira, 26 de fevereiro de 2016

A Maravilha Negra

José Leandro Andrade, um dos grandes jogadores que o futebol uruguaio revelou ao mundo, nasceu em Salto, no bairro pobre de “Cachimba”, dia 1 de outubro de 1901 e morreu em Montevidéu, em 5 de outubro de 1957.

Foi o primeiro ídolo negro da história do esporte no vizinho, tendo feito parte da chamada “Celeste Olímpica”, que conquistou entre outros títulos, o bicampeonato olímpico em 1924 e 1928 e a Copa do Mundo FIFA em 1930.

Começou a carreira no Misiones Football Club, passando depois pelo Bella Vista, Nacional, Peñarol e Wanderers, todos times de seu país. Mas foi no Nacional que viveu os melhores momentos de sua carreira, sendo campeão nacional nos anos de 1922 e 1924. Pelo Nacional participou de várias excursões pela Europa e Estados Unidos.

Andrade tinha um físico privilegiado, com 1,80 m de altura e pesava 79 quilos. Era esguio e veloz. Os seus carrinhos na bola se tornaram famosos, chamados de “tijera”, o equivalente a nossa conhecida “tesoura”, permitiam que interceptasse jogadas com desenvoltura.

Atuava tanto como médio volante, como zagueiro (direito ou esquerdo) e cativou o mundo com a sua eficácia, elegância, inteligência e técnica de jogar futebol, o que o tornou num dos jogadores mais brilhantes da história.

Sua liderança em campo o transformou no verdadeiro cérebro das equipes uruguaias campeãs dos jogos olímpicos de 1924, em Paris, e 1928, em Amsterdã. Ele foi o primeiro negro a pisar um gramado da Europa. Seus movimentos felinos encantaram jornalistas e torcedores franceses, que trataram de rebatizá-lo, chamando-o de “Merveille Noire”, a “Maravilha Negra”. E assim nascia um mito do futebol.

Andrade se tornou bastante conhecido na Europa, a ponto de ter dançado tango com a famosíssima Josephine Baker. Quando da Copa do Mundo de 1930, a primeira da história, Andrade estava com 29 anos e não apresentava o melhor da sua forma física, mas ainda assim jogou o suficiente para ajudar o seu país a ganhar o título mundial. Seu sobrinho, Víctor Rodríguez Andrade, foi campeão mundial com o Uruguai em 1950.

Um verdadeiro levantador de “canecos”, Andrade ainda foi campeão pelo Uruguai dos certames Sul-Americanos, atual Copa América, em 1923, em Montevidéu e em 1926, na cidade de Santiago. Vestiu a “Celeste” por 43 vezes, sendo 33 em jogos oficiais.

Reza a lenda que o famoso intérprete de jazz norte-americano Louis Armstrong ter-se-á inspirado no “Pelé dos anos 20” (como Andrade foi um dia apelidado) para criar o seu estilo artístico.

Além de um fabuloso jogador Andrade era um extraordinário bailarino. Após a sua retirada dos gramados partiu para Paris, onde se tornou um célebre bailarino de cabarés. Gostava de tocar tamborim e violino.

Fez parte de um bloco carnavalesco de nome “Lubolos”. Boêmio inveterado foi relegado ao esquecimento em seu próprio país, o que lhe causou muita mágoa. Esses dois fatores fizeram com que sua saúde fosse se deteriorando.

Fora da Seleção, jogou nos principais clubes uruguaios, Nacional e Peñarol e ainda no Montevideo Wanderers e no Bella Vista. Brilhou jogando no Nacional, quando de uma excursão pela Europa em 1925, e em outra pelas américas do Norte e Central em 1927.

Em 1950, esteve no Brasil como convidado a assistir à Copa do Mundo, e viu seu sobrinho Victor Rodriguez atuar em campo na vitória uruguaia sobre o Brasil no “"Maracanazo”". Victor jogava na sua posição e também usava o nome Andrade, em homenagem ao tio.

José Leandro Andrade encerrou sua carreira jogando na Argentina, e passou a trabalhar na construção civil, terminando seus dias na miséria. Morreu em 5 de outubro de 1957, em um asilo de Montevidéu, vítima de problemas pulmonares, aos 56 anos de idade. 
Em 2003, foi tema de um livro escrito pelo uruguaio Jorge Chagas, intitulado “"Gloria e tormento: A história de José Leandro Andrade".
Abaixo, um belo texto de Luís Freitas Lobo extraído do seu livro Os Magos do Futebol, que descreve o ídolo José Leandro Andrade.

O imortal José Leandro Andrade. Na trilha do Maravilha Negra

Entrelaçado pelo cacimbo da noite que caíra sob a Cidade das Luzes, El Loco Romano desembrulhou mais uma vez o papel já amarrotado para confirmar a morada que o seu amigo José Leandro Andrade, companheiro de dribles e tijeras nas canchas de Montevidéu, lhe dera tempos atrás para que quando fosse ao Velho Continente não se esquecesse de o visitar.

Vivia-se no início da década de 30. Era tempo de magia na brilhante noite de Paris, ainda levitada pela aura dos loucos anos 20, enebriada pelo esplendor excêntrico, negro e hipnotizante de Jossephine Baker, mito da Bélle Époque, rainha dos cabarets onde dançava e seduzia ao ritmo da Revue Negre.

Ninguém imaginava que um outro negro, vindo do outro lado do oceano, nascido no bairro pobre de Cachimba, tornado célebre nos estádios de futebol, fosse capaz de ofuscar o seu brilho.

Quando chegou à morada que Andrade lhe indicara, Romano abriu os olhos de espanto. Na sua frente estava um suntuoso apartamento. Pensou: devo ter-me enganado.

Mesmo assim, tocou à campainha, surgindo uma bela donzela que só falava francês, e do que Romano lhe disse só percebera a mágica frase: mesié Andrade. E eis que a Maravilha Negra, como lhe chamaram os jornalistas gauleses que o viram nos Jogos Olímpicos de 1924, surge vestindo um longo quimono de seda, por entre uma luxuosa habitação decorada por peles, estatuetas em ouro, cheiro a perfume caro e abat-jours milionários.

Durante a época de futebolista, num tempo em que atravessar o oceano durava meses, nunca quisera sair do Uruguai onde sempre jogou. Depois de abandonar o futebol, rumou à mágica capital francesa, onde alternou uma vida de boêmia com a de artista de variedades, no qual era exímio bailarino, dançando e deslumbrando com o seu corpo alto, moreno e musculoso, tornando-se desejado por muitas mulheres, da mais fina sociedade, que o admiravam quase como um amuleto.

Entre os homens, apesar de, no início do século, o futebol ainda não cativar grandes paixões, nenhum esquecera a sua deslumbrante aparição com a fantástica seleção uruguaia nos Jogos Olímpicos de Paris, em 1924.

Nesse tempo nunca a Europa vira um negro jogar futebol. Ele fora o primeiro. Poucos dos que o viram jogar estarão hoje vivos, mas para a história fica o registro de um zagueiro com fôlego e talento infinito, que marcava o atacante e depois, acariciando a bola, subia pelo seu flanco com a elegância de um bailarino, driblando num jogo de cintura que parecia dança.

Conta-se que num jogo atravessara meio-campo com a bola dominada na cabeça. Quando na postura defensiva, roubava a bola, pela terra e pelo ar, guardando-a nos labirintos de músculos das suas pernas de dançarino, com um estilo que, naquela época, era algo nunca visto, sobretudo se executado com a beleza plástica de Andrade.

Já nesse tempo era um amante da boêmia que sonhava conhecer a bela e provocante Josephine Baker. No carnaval saía bailando com um tamborim, nos gramados, dançava com uma bola presa aos pés, alheio aos conselhos dos seus pais que insistiam em dizer-lhe para estudar, como fizera o seu dedicado irmão Nicasio. Mas Andrade vivia noutro mundo.

Sublime, forte como uma árvore centenária, ágil como um felino, deslumbrou o mundo com o seu futebol de encantar serpentes.
Anos depois, sob as estrelas de Paris, manteve a mesma personalidade feita de grandezas e tristezas. Apesar de venerado pelos mais finos olhares femininos, nas noites do Pigalle, Andrade era um homem impossível de prender. O amor pelas mulheres, para ele, ia e vinha em cada noite.

Anos depois, regressaria à sua Montevidéu, a bordo do Valdívia, célebre navio, vestindo uma gabardina cruzada, chapéu de galã, e cachecol de fina seda. Mais do que às essências perfumadas da douce France, Andrade pertencia à maresia rude da costa uruguaia, onde o sol queima e a noite se ilumina nos tangos de Gardel. Com o passar do tempo foi ficando, no entanto, cada vez mais isolado.

Os seus olhos foram escurecendo e com o silêncio a sua alegria desvaneceu-se. Acabaria por morrer tuberculoso, só, em 1957, na mais profunda miséria, mas sem nunca pedir nada, nem esperar que o auxiliassem, apesar de desde há tempos a doença o ter começado a minar.