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segunda-feira, 2 de fevereiro de 2009

A aristocracia entra em campo

O primeiro goleiro a vestir a camisa titular da Seleção Brasileira de Futebol foi Marcos Carneiro de Mendonça, jogador do Fluminense Foot Ball Club. No dia 21 de julho de 1914, no campo da Rua Guanabara, 94, em plena era do amadorismo, pela primeira vez uma representação nacional foi formada e para enfrentar um adversário profissional, o poderoso Exceter City, da Inglaterra. O selecionado brasileiro, que contou apenas com jogadores do Rio de Janeiro e São Paulo formou naquele histórico jogo com Marcos – Pindaro e Nery – Lagreca – Rubens Sales e Rolando – Oswaldo Gomes – Abelardo – Friedenreich – Osman e Formiga. O time nacional venceu por 2 X 0, gols de Oswaldo Gomes e Osman.

Essa mesma seleção, no dia 27 de setembro daquele ano foi protagonista de outro feito histórico, quando derrotou pela primeira vez a então poderosa seleção da Argentina. Em jogo disputado em Buenos Aires, o Brasil venceu por 1 X 0, gol de Rubens Salles.

Marcos Carneiro de Mendonça não foi apenas o primeiro goleiro a jogar pela Seleção Brasileira, mas também o mais novo até hoje a envergar a camisa número 1 do nosso selecionado, aos 19 anos e 6 meses de vida. Ele nasceu em Cataguases (MG), no dia de 25 de dezembro de 1894. Sua carreira de futebolista começou quando tinha apenas 13 anos de idade e foi jogar no Haddock Lobo Football Club, antigo clube do bairro da Tijuca, na zona norte do Rio de Janeiro, fundado em 1908.

O Haddock Lobo chegou a disputar os campeonatos estaduais de 1909 e 1910. Suas cores eram o marrom e branco. O primeiro uniforme do clube consistia em camisas marrons com gravatas brancas, calções brancos e meias negras. Logo esse uniforme foi mudado para camisas listradas alvi-marrons, permanecendo os calções e meiões.
Em 1911, em meio à uma crise financeira, o clube fundiu-se ao América Football Club.

A proposta inicial era a formação de um novo clube chamado Haddock Lobo-América Football Club. Mas graças à habilidade dos dirigentes rubros as cores e o nome do América permaneceram na fusão que na prática, acabou sendo apenas uma aquisição dos terrenos do Haddock Lobo. O América herdou seu estádio, na rua Campos Sales, onde hoje funciona sua sede social e integração de seus atletas, entre eles Marcos Carneiro de Mendonça, já que a sua identidade permaneceu inalterada.

Há registros de um outro Haddock Lobo Football Club em meados da década de 10, talvez formado por ex-membros do então já extinto clube. Esse segundo Haddock Lobo não participou de nenhuma competição importante, e teve vida breve.

Foi na infância que Marcos escolheu a posição de goleiro, costumeiramente reservada aos menos hábeis com a bola nos pés, quando teve febre amarela, sarampo, forte infecção intestinal e problemas pulmonares. Como estava sempre cercado de cuidados, e impedido de fazer grades esforços, achou que no gol seria menos exigido e realizaria seu sonho de ser jogador de futebol.

Marcos defendeu as cores americanas até 1913, quando se sagrou campeão carioca. A conquista do título não foi suficiente para que continuasse no América. Assim como outras dezenas de sócios e atletas descontentes com a diretoria americana, em 1914 se transferiu para o Fluminense, clube de seu coração, onde jogou até o fim da carreira.

Naquela época romântica do futebol brasileiro, quando os atletas, na esmagadora maioria eram moços de cor branca e filhos das famílias mais abastadas e de sobrenomes tradicionais, era comum a presença feminina nos estádios, não só para apreciar os jogos, mas também para admirar o porte atlético e a elegância dos jogadores. E nesse quesito Marcos também se destacava. Dono de reflexos apurados, grande sentido de colocação, estilo clássico e refinado, com seus 1,94 metro de altura, chamava atenção pela maneira elegante como trajava o uniforme tricolor.

O seu sentido de colocação era tão preciso que sempre ao final dos jogos a camisa e calção se mantinham limpos, pois raras vezes precisava se jogar ao chão para fazer alguma defesa. Era grande pegador de pênaltis, estudava maneiras eficazes para suas defesas e saídas do gol, tinha sangue frio e reflexos apurados. Para Marcos, o futebol era uma ciência geométrica. Os jornais da época destacavam que ele era o alvo preferido dos corações das mocinhas que acompanhavam os jogos do tricolor carioca nas Laranjeiras. Costumava usar presa ao calção uma fita roxa dada por sua esposa, o que motivava constantes provocações dos adversários e suspiros das demais torcedoras.

Mas até os craques passam por aqueles dias em que nada dá certo e com nosso ídolo, não foi diferente. O jornalista Paulo Guilherme, em seu livro “Goleiros - heróis e anti-heróis da camisa 1”, editado pela Alameda, relata um “frangaço” tomado pelo aristocrático Marcos Carneiro de Mendonça, tão logo ele, que acreditava na teoria da cobertura dos ângulos, receita infalível para evitar gols, foi traído pela soberba em um jogo entre o Fluminense e o time do Vila Isabel, equipe fraquíssima. Em certa altura do jogo, o zagueiro Chico Netto atrasou uma bola para Marcos, que abaixou-se desatento para segurar a redonda e acabou por deixá-la passar por entre seus dedos, num lance absolutamente ridículo. Foi o gol que deu a vitória ao Vila Isabel e impediu o Fluminense de ganhar o título de 1918 de maneira invicta.

A poetisa Anna Amélia de Queiroz, que depois seria sua esposa (casaram em 1917), costumava dedicar a Marcos versos que o comparavam a um deus grego, por seu refinamento, graça e nobreza, como no poema “O salto”:

Ao ver-te hoje saltar para um torneio atlético,
Sereno, forte, audaz como um vulto da Ilíada
Todo meu ser vibrou num ímpeto frenético
Como diante de um grego, herói de uma Olimpíada.

Estremeci fitando esse teu porte estético
Como diante de Apolo estremecera a dríada.
Era um conjunto de arte esplendoroso e poético,
Enredo de inspiração para uma heliconíada.

No cenário sem par de um pálido crepúsculo
Tu te enlaçaste no ar, vibrando em cada músculo
Por entre aclamações da massa entusiástica,

Como um Deus a baixar do Olimpo, airoso, lépido
Tocaste o solo, enfim, glorioso, ardente intrépido,
Belo na perfeição da grega e antiga plástica.

Sua carreira acabou precocemente, quando tinha apenas 29 anos de idade e sofreu uma séria lesão. Em 1928, aos 34 anos, tentou voltar a jogar e ainda pelo Fluminense, quando houve um desentendimento do goleiro Batalha com a diretoria do Clube. O retorno aconteceu num jogo contra o Bangu, em 26 de agosto de 1928, com vitória do tricolor por 2 X 1.

Os jornais da época noticiaram com destaque a reestréia do jogador: "Marcos Carneiro de Mendonça, o grande arqueiro que reapareceu ontem, após um longo período de ausência, foi recebido na sua entrada em campo com uma estrondosa aclamação. O nome do grande player ouvia-se pronunciado em todos os cantos da praça de esportes. O valoroso footballer trajava como antigamente, camisa e calção de cor branca, ostentando na cintura aquela tradicional fita roxa dos seus áureos tempos.” Seu último jogo ocorreu em 03 de setembro daquele ano, contra o Sírio Libanês, quando o Fluminense perdeu por 3 X 1.

Defendeu o Fluminense em 127 jogos e sofreu 164 gols, o que tem explicação no fato de que os primeiros times da história do futebol buscavam sempre o ataque, abdicando de sistemas defensivos mais rígidos, como acontece hoje. O resultado era grande quantidade de gols. Na Seleção Brasileira, Marcos jogou 15 partidas (10 oficiais e 5 amistosos) entre 1914 e 1923. Marcos foi campeão carioca quatro vezes: 1913 (América), 1917, 1918 e 1919 (Fluminense), campeão do Torneio Início (1916), campeão da Taça Ioduran, um torneio equivalente ao Rio-São Paulo (1919) e campeão sul-americano (1919 e 1922) e da Copa Rocca (1919) pela Seleção Brasileira.

Mesmo fora dos gramados o ex-goleiro não abandonou o gosto pelo futebol, continuando a participar das atividades do Fluminense, chegando a ser presidente do clube entre maio de 1941 e agosto de 1943. Além disso, tornou-se historiador. Membro do Instituto Histórico e Geográfico do Brasil (IHGB) e criador do Centro de Estudos e Pesquisas Históricas (CEPH), Marcos dedicou parte de sua vida à pesquisa sobre o século XVIII no Brasil e especializou-se no período do Marquês de Pombal. Foi fundador da Comissão de Estudos e Pesquisas Históricas (CEPHAS) e também presidente da Sociedade Capistrano de Abreu e membro, dentre outros, do Conimbricensis Instituti, de Portugal, da Academia Portuguesa da História e da Sociedade de Geografia do Rio de Janeiro.

O casal Carneiro Mendonça era também grande incentivador da cultura. Ocasionalmente, promoviam palestras, seminários e exposições no célebre “Solar dos Abacaxis”, assim chamado por ter abacaxis de ferro enfeitando as sacadas. Foi por décadas a residência do casal Carneiro de Mendonça. O palacete foi construído em 1843, na rua Cosme Velho, 857, a poucos metros do Largo do Boticário, a mando do comendador Manuel Borges da Costa, bisavô de Anna Amélia. A propriedade é de tamanho monumental, são dez quartos, cinco salas, biblioteca, clarabóia, sótão, porão, jardim e uma grande área verde nos fundos.

O solar foi tombado pelo Instituto Estadual do Patrimônio Cultural (Inepac) em 12 de setembro de 1990. A Exposição de Arte Sacra, na década de 70, com obras das coleções da família e de amigos foi uma das últimas abertas ao público. A renda dos ingressos foi revertida para projetos sociais que apoiavam. Marcos reuniu uma majestosa biblioteca com 11 mil volumes, hoje de posse da Academia Brasileira de Letras. Ainda trabalhou no escritório da Usina Esperança, a primeira siderúrgica a funcionar regularmente no país, que pertencia à família de Anna Amelia. Além de fundar a Casa do Estudante, ela militou pelo voto feminino. O casal teve três filhos, Márcia, Juko e a critica teatral, Barbara Heliodora, de 85 anos (29-08-1923). Marcos morreu em 19 de outubro de 1988, aos 94 anos. (Pesquisa: Nilo Dias)

Anna Amélia e Marcos Carneiro de Mendonça. (Foto: Biblioteca Nacional)