Boa parte de um vasto material recolhido em muitos anos de pesquisas está disponível nesta página para todos os que se interessam em conhecer o futebol e outros esportes a fundo.

segunda-feira, 27 de agosto de 2012

A Liga contra o futebol

O futebol sempre provocou polêmicas. Uma das mais interessantes envolvendo o chamado “esporte bretão” envolveu dois grandes nomes da literatura brasileira: Coelho Netto, ardoroso defensor do futebol e Lima Barreto, crítico feroz do novo esporte.

Depois se ficou sabendo que o debate envolvendo o futebol, não passava de um subterfúgio para esconder uma rixa pessoal entre os dois escritores. Em 15 de fevereiro de 1918, Lima Barreto colocou em uma de suas colunas, que “Coelho Netto era o sujeito mais nefasto que apareceu no meio intelectual brasileiro”.

Afonso Henriques de Lima Barreto, mais conhecido por Lima Barreto, foi um jornalista e escritor, nascido no Rio de Janeiro em 13 de maio de 1881 e falecido na mesma cidade, em 1 de novembro de 1922. E o que ele teve a ver com o futebol?

Lima Barreto foi um grande opositor do futebol, tendo escrito uma série de artigos em jornais e revistas da época, nos quais dizia que o esporte inventado pelos ingleses, contribuía para a desorganização do viver urbano.

Com espaço assegurado nos círculos literários, com três romances e uma infinidade de crônicas, Lima inaugurou seus ataques em 15 de agosto de 1918 no artigo “Sobre o Foot-ball” no jornal “Brás Cubas”:

“Diabo! A cousa é assim tão séria? Pois um divertimento é capaz de inspirar um período tão gravemente apaixonado a um escrito? (...)

Reatei a leitura, dizendo cá com os meus botões: isto é exceção, pois não acredito que um jogo de bola e sobretudo jogado com os pés, seja capaz de inspirar paixões e ódios. Mas, não senhor! A cousa era a sério e o narrador da partida, mais adiante, já falava em armas...

Não conheço os antecedentes da questão; não quero mesmo conhecê-los; mas não vá acontecer que simples disputas de um inocente divertimento causem tamanhas desinteligências entre as partes que venham a envolver os neutros ou mesmo os indiferentes, como eu, que sou carioca, mas não entendo nada de foot-ball.“

Transformando-se no paladino do combate ao futebol, Lima elegeria justamente Coelho Neto como o principal adversário. Teve início então um acirrado confronto pelas páginas da imprensa carioca, logo depois de um empolgante discurso de Neto, por ocasião da inauguração da piscina do Fluminense, em 1919 — discurso que para Lima parecia um verdadeiro pecado, manifestado na crônica “Histrião ou literato”, na “Revista Contemporânea”, de 15 de fevereiro de 1919:

Lima Barreto acusava Coelho Neto de fazer “somente brindes de sobremesa para satisfação dos ricaços”, e sustentava que a simpatia de Neto pelo futebol seria mero oportunismo, um meio de agradar às ricas famílias, vindo de “um homem que não entende sequer a alma de uma criada negra”.

A partir daí, Lima aumentou a quantidade e intensidade dos ataques, em crônicas agressivas e irônicas, nas quais surgia a imagem de um jogo brutal e sem sentido, totalmente diferente do elemento de regeneração social preconizado por Coelho Neto, para desespero da imprensa carioca, quase toda ela empenhada em prestigiar o futebol.

Havia raríssimas exceções como o jornalista e escritor Carlos Sussekind de Mendonça, que aliou-se a Lima Barreto na luta contra o futebol, que ele considerava entre outros aspectos “micróbio de corrupção e imbecilidade”, “estrangeirismo estéril e inútil”.

Lima Barreto chamava o esporte de “blefe de regeneração social”, salientando os malefícios “físicos, sanitários, sociais e culturais” de sua disseminação. Em 1921, então editor do jornal “A Época”, do Rio de Janeiro, Sussekind de Mendonça teve seu livro “O sport está deseducando a mocidade brasileira” - hoje obra raríssima - publicado com o subtítulo “dedicado a Lima Barreto”.

Ainda em 1919, outros intelectuais se juntaram a Lima Barreto. Entre eles o doutor Mário de Lima Valverde, que meses antes discorrera para Lima sobre os malefícios à saúde provocados pela prática de futebol, o jornalista Antonio Noronha Santos e o “homem de letras”, Coelho Cavalcanti. Foi quando eles resolveram criar, em março de 1919, uma “Liga Contra o Futebol”, cuja constituição foi discretamente anunciada em pequena nota na edição do “Rio-Jornal”, de 12 de março.

A Liga serviria para debelar do convívio social, o que ele chamava de “Caixa de Pandora”, cujos malefícios seduziam inadvertidamente os homens de bem daquelas metrópoles modernas.

A notícia de que Lima Barreto e alguns companheiros tratavam de fundar uma “Liga contra o Football”, levou um grupo de esportistas à sua casa, para obter mais esclarecimentos sobre os destinos e fins da entidade. Ele respondeu que conversara com o médico Mário de Lima Valverde em uma confeitaria do Méier. Na ocasião, ele expôs os prejuízos de toda a ordem que o abuso imoderado dos sports, sobretudo o football, trazia à nossa economia vital.

Tempos depois Lima Barreto explicou que a Liga não foi avante, não somente pelos motivos que Sussekind Mendonça escreveu no seu livro, mas também porque faltou dinheiro. Quando a Liga foi fundada, Barreto foi alvejado com os mais diversos insultos pelos jornais. Foi até ameaçado.

Lima Barreto denunciava as “verdadeiras atrocidades promovidas pelo futebol”, como na crônica “Divertimento?”, publicada na revista “Careta”, em 4 de dezembro de 1920, em que destacava os inúmeros conflitos e constantes brigas ocorridos nos campos, com tumultos e batalhas entre torcidas diferentes, registradas nos jornais diários a cada segunda-feira, culminando com o tiroteio num jogo do Metropolitano, em 18 de dezembro de 1920.

Lima criticava os “favores e favorezinhos” que os clubes de futebol recebiam do Governo. Segundo ele, os clubes de futebol eram “portadores de uma pretensão absurda, de classe, de raça, etc”. Isso porque os defensores do futebol, com Coelho Neto à frente, sustentavam ser “um sport que só pode ser praticado por pessoas da mesma educação e cultivo “ (Jornal Sports, de 6 de agosto de 1915) e reclamavam “que alguns jogadores não tinham o nível social de há uns anos atrás” (Jornal do Brasil, de 3 de maio de 1920).

Porém, não eram apenas econômicas e sociais as distinções combatidas por Lima Barreto, mas também raciais, “vedando aos negros a participação nos grandes clubes de futebol”. Em 1921 quando o próprio presidente Epitácio Pessoa proibiu jogadores negros de fazerem parte do selecionado que ia à Argentina disputar um campeonato, Lima foi duro nas críticas, publicando no mesmo dia 1 de outubro de 1921 dois artigos: “O meu conselho” e “Bendito foot-ball” — no jornal “A . B. C.”, onde afirmava que “quando não havia foot-ball, a gente de cor podia ir representar o Brasil em qualquer parte”.

Vendo nos sócios dos grandes clubes os herdeiros dos antigos senhores de escravos, Lima enxergou no futebol “uma das formas de continuação da dominação exercida durante décadas pelo regime escravista, onde se trocava a violência pela humilhação de quem paga impostos para sustentar com subvenções oficiais, um jogo ao qual não tem acesso”.

O alvo preferencial de Lima Barreto foi justamente o literato que mais vivamente argumentava em prol do esporte naqueles dias: Coelho Netto. Seus ataques eram às vezes irônicos; outras vezes buscavam argumentações mais firmes, porém suas críticas eram sempre diretas:

“(...) O senhor Neto esqueceu-se da dignidade do seu nome, da grandeza da sua missão de homem de letras, para ir discursar em semelhante futilidade. Os literatos, os grandes, sempre souberam morrer de fome, mas não rebaixaram a sua arte para simples prazer dos ricos. Os que sabiam alguma coisa de letras e tal faziam, eram os histriões; e estes nunca se sentaram nas sociedades sábias”.

Henrique Coelho Netto, ou simplesmente Coelho Netto foi um dos mais destacados intelectuais brasileiros do período. A atração que o futebol exercia sobre ele manifestou-se já em seu romance “Esfinge”, publicado em 1908, em que o personagem James Marian, um inglês hóspede da pensão de miss Barkley, tinha o hábito de “aos domingos, sair cedo com seu material de tênis e com roupa para o foot-ball”.

Adorava futebol e associou-se ao Fluminense Football Club, do qual foi o grande orador e chegou mesmo a compor seu primeiro hino. Era um apaixonado pelo clube, prova disso que quando era deputado federal foi protagonista, bengala à mão, da primeira invasão de campo que se tem notícia no futebol.

Tudo por conta de um pênalti marcado em prol do Flamengo, quando o placar já era desfavorável ao Fluminense em 3 X 2, num Fla-Flu disputado no campo da rua Paissandu, em 22 de outubro de 1916. Junto com Coelho Neto também invadiu o campo o delegado de Polícia, Ataliba Dutra e boa parte da torcida. Esse ato provocou a anulação do jogo.

Coelho Netto acreditava que o espraiamento do futebol facilitaria a intervenção no cotidiano de diversos grupos de trabalhadores, propagandeando os “sentimentos nobres” atribuídos as “raças superiores”, como o senso de disciplina, a harmonia social e o amor à pátria.

O escritor explicitou esse pensamento em trechos da letra do primeiro hino do Fluminense, em 1915: “(...) Lutando em justos de alegria/O nosso esforço se congraça/Em torno do ideal viril/De avigorar a nova raça do Brasil.”

Coelho Netto educou seus filhos dentro do ambiente esportivo do seu clube do coração, o Fluminense. O filho João Coelho Netto, o “Preguinho”. Nascido em 1905, talvez tenha sido seu maior orgulho, além da melhor personificação de seu pensamento esportivo.

O apelido “Preguinho” ele ganhou quando tinha apenas oito anos de idade, e numa brincadeira com companheiros, Foi jogado num rio e, nervoso por não saber nadar direito, atrapalhou-se e afundou como um prego. “Preguinho” teve uma educação esportiva variada, tendo sido campeão de basquete nos anos de 1924, 1925, 1926, 1927 e 1931; foi campeão de atletismo em 1931; praticou com destaque o pólo-aquático, o vôlei, a natação e o hóquei sobre patins.

Mas teve às maiores glórias no futebol: foi campeão carioca em 1933, 1937 e 1938 pelo Fluminense, clube que defendeu desde 1925. Como atacante marcou 184 gols pelo tricolor, e teve atuações destacadas que o levaram à seleção brasileira. Participou da primeira Copa do Mundo da história,em 1930, no Uruguai. Foi ele que marcou o primeiro gol brasileiro na competição.

O preparo técnico e físico fizeram dele nas décadas de 20 e 30, presença obrigatória em seleções cariocas e brasileiras. Em que pese todo o sucesso, jogou a vida inteira como amador: em 1933 durante o período mais intenso de profissionalização de atletas no Rio de Janeiro, recusou-se a receber dinheiro para defender o clube. (Pesquisa: Nilo Dias)


Coelho Netto.