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sexta-feira, 23 de março de 2018

O jogo que não existiu

Em 1973, o golpe militar que empossou a ditadura de Augusto Pinochet rompeu as relações entre o Chile e a União Soviética. O fato mudou os rumos da Copa de 1974 e transformou o Estádio Nacional de Santiago em um vergonhoso túmulo da história moderna.

Para entender como se chegou a esse estado de coisas é preciso percorrer os caminhos da história e voltar ao passado, até às décadas de 1960 até 1980, época em que os Estados Unidos incentivavam golpes civis-militares na América do Sul, impedindo com isso a escalada comunista.

Em 3 de março de 1964 aconteceu o golpe civil militar no Brasil. O mesmo veio a ocorrer no Chile, em 11 de setembro de 1973, com ascensão do general Pinochet ao poder. O “governo” incentivou o futebol, pois o povo assustado e inseguro, não conseguia viver sem pão e circo.

O problema é que o Chile não havia se classificado nas eliminatórias para a Copa de 1974. E nem a União Soviética (URSS). Foi ai que entrou em ação a FIFA, que resolveu fazer uma repescagem entre os dois países, para admitir um 16º participante na Copa, que até então contava com apenas 15 classificados. E marcou dois jogos, ida e volta.

Sem imaginar que ocorreriam mudanças tão drásticas no panorama político do país, a Federação Chilena de Futebol programou uma série de jogos preparatórios a caminho de Moscou e reservou as passagens aéreas dos jogadores para a noite de 11 de setembro.

Naquele mesmo dia, Salvador Allende morreu dentro do palácio presidencial, obrigando o Chile a largar a mão esquerda soviética e agarrar a mão direita norte-americana, tudo em um piscar de olhos.

Com Pinochet no poder, a URSS passou de principal aliada do Chile à pior inimigo. Pinochet não queria que o jogo se realizasse, mesmo que isso representasse ficar fora do Mundial.

Mas o general acabou convencido e autorizou a viagem, porque ir à Copa seria bom “para o esporte chileno” e, caso o time tivesse uma atuação digna, também seria bom “para a imagem internacional do novo governo e uma alegria para o povo”.

No dia 26 de setembro de 1973, 15 dias depois do golpe civil militar, o Chile conseguiu um empate de 0 X 0 no "Estádio Lenin", em Moscou, diante de 60 mil pessoas que compareceram para vaiar os “novos capitalistas” da América do Sul. Não existe nenhum registro audiovisual daquele jogo.  

Antes da partida, as coisas em Moscou não foram nada fáceis para os chilenos, na maioria esquerdistas. Mas os soviéticos não se importavam com isso. Para eles, a delegação se identificava com Pinochet, então deveria ser tratada de acordo.

Os chilenos passaram dias concentrados no Hotel Ucrânia, onde passaram por situações desagradáveis. A comida não era a que pediam; o ônibus nunca chegava na hora nem mesmo no dia em que foram reconhecer o campo.

Quando chegaram, o estádio já estava fechado. Os jogadores tiveram de pular o muro para treinar, disse o dirigente chileno Alfredo Asfura. Os atletas Alberto Quintano e Pedro Fornazzari viajaram via México, pois lá atuavam. Mas como chegaram três horas antes que o restante da delegação, foram obrigados a esperar sentados no chão do aeroporto, na sala da KGB.

O ponta-esquerda Leonardo Veliz relatou que em Moscou foi abordado na rua por um estudante chileno da "Universidade Lumumba", filho de um comunista. E disse a ele para esquecer de voltar ao Chile, porque o fato de ter morado na URSS seria um perigo para sua integridade. Veliz acha que salvou uma vida.

Os jogadores chilenos lembram que a atuação do juiz brasileiro Armando Marques foi importante, porque ele não se deixou influenciar pelo ambiente hostil ou pelas vaias.

O zagueiro Elias Figueroa, que na época jogava pelo Internacional, de Porto Alegre, declarou: “Como eu já falava um pouco de português, aproveitei para lhe dizer algumas coisas, criar clima favorável. E embora diga que não, eu sei que ele deixou passar várias faltas, como a que cometi no atacante Andreassian”.

Marques, já falecido, não gostava de relembrar a partida, garantindo que só fez seu trabalho. Hugo Gasc, único jornalista chileno que esteve em Moscou naquele dia, disse que o juiz foi decisivo, porque era um anticomunista raivoso. Marques detestava o regime comunista.

Descontente com os rumos fascistas direitistas da política chilena, fascismo, com cor esquerdista, que foi praticado também por Lenin na terra dos czares, a URSS comunicou oficialmente à FIFA que não iria jogar a segunda partida, marcada para 21 de novembro de 1973, no Estádio Nacional de Santiago. Dias após o primeiro jogo, a União Soviética rompeu relações diplomáticas com o Chile e a embaixada foi desconectada.

Os soviéticos sabiam que o Estádio Nacional, em Santiago, havia se transformado em um campo de concentração de trabalhos forçados ao estilo do regime nazista.

Alguns detentos daquele tempo até hoje lembram que durante a noite sempre morria alguém, fosse fuzilado pelos carabineiros de Pinochet, fosse por suicídio. Praticamente todos que para lá eram mandados acabavam também torturados.

Guitarristas supostamente tiveram seus dedos quebrados e foram forçados a tocar seus instrumentos. Os veículos do exército explodiam a música dos "Beatles" e dos "Rolling Stones" no volume máximo para abafar os gritos dos detidos.

Victor Jara, o cantor e ativista icônico foi preso, torturado e executado logo após o golpe. A morte de Pablo Neruda, embora causada por câncer e não pelo regime, tornou-se ainda mais traumática devido ao fato de que Pinochet se recusou a permitir um enterro público. O funeral foi um assunto silenciado, mas milhares de chilenos desafiaram as autoridades e encheram as ruas de luto.

Estima-se que mais de 40 mil pessoas passaram algum tempo no estádio; entre 11 de setembro e 7 de novembro, 12 mil pessoas foram internadas lá.

Assim sendo, as notícias do que acontecia no estádio correram rápido pelo mundo. Ao mesmo tempo em que surgiam as dúvidas sobre se o local da partida seria mesmo aquele, os militares confirmavam o evento, enquanto cuidavam do gramado melhor do que tratavam qualquer detento.

Francisco Fluxá, presidente da Federação Chilena de Futebol, ainda sem a confirmação da partida pela FIFA, sugeriu que o jogo fosse realizado em Viña del Mar. O tirano Pinochet não concordou. Seu plano era fingir estabilidade e normalidade, sobretudo na capital Santiago.

Aos poucos, o governo chileno esvaziou o estádio, transferindo os prisioneiros para outros lugares de reclusão, especialmente no campo inaugurado na abandonada “Salitrera Chacabuco”, a 100 km de Antofagasta.

Por fim, 48 horas antes do jogo, a arena do Estádio Nacional, onde o Brasil havia se consagrado bicampeão mundial em 1962, estava pronta para a maior farsa da história das Eliminatórias das Copas.

Embora a FIFA tenha no dia 17 de novembro informado oficialmente que a URSS não disputaria o jogo, este foi confirmado por determinação de Pinochet, que achava que a não realização geraria grande prejuízo para o seu prestigio.

Como o regime era ditatorial, a imprensa teve de ficar calada. E o povo na sua ignorância e mediocridade não ficou sabendo a verdade. Tudo parecia indicar que o jogo seria realizado e valeria a classificação para a Copa. Os jogadores chilenos até concentraram na véspera, 20 de novembro.

O que se viu foi um jogo fantasmagórico, uma peça de ficção. Um verdadeiro Teatro do Absurdo foi instalado. O povo, no entanto, acreditava no ditador. Pinochet, que insistia na palhaçada. No horário anunciado pelo regime militar, o Estádio Nacional foi aberto. O povo não foi em massa, apenas 15 mil ingressos vendidos. Até um árbitro foi escalado.

O show daquela jornada, batizado mais tarde pela imprensa chilena como “o gol mais triste do Chile”, começou com o som de bandas militares para entreter os pagantes.

E o que se viu a partir daí foi o mais indecoroso espetáculo do futebol. O árbitro apitou e a equipe chilena avançou contra o gol do “adversário fantasma”.

O juiz (chileno) Rafael Ormazábal apitou o início do jogo: Valdes saiu com Caszely, que tocou para Véliz, que passou para Páez. Este devolveu para Caszely e, conforme combinado no vestiário, o camisa 9 entregou a bola ao capitão Francisco “Chamaco” Valdes, que encarou o gol vazio e converteu.

Gol de Pinochet. Como não havia nenhum soviético em campo para reiniciar a partida, o árbitro decretou o fim do jogo, com vitória para o Chile por 1 X 0.

Para agradar ainda mais o povo presente, o Santos F.C., sem Pelé, foi contratado previamente, por uma cota de 30 mil dólares, entrou em campo e mandou 5 X 0 no time chileno totalmente despersonalizado e psicologicamente desmoronado.

Na Copa de 1974, o Chile não ganhou nenhum jogo: perdeu um e empatou dois. No 0 X 0 contra a Austrália, um grupo de chilenos invadiu o campo para protestar contra Pinochet.

Os protestos persistem até hoje em todos os dias 11 de setembro, quando o povo chileno se divide entre os que choram seus desaparecidos e os que ainda defendem a memória do velho ditador.

Essa encenação ridícula de 21 de novembro de 1973 entrou para a história como uma das noites mais tristes da história do futebol, onde o esporte serviu aos interesses partidários para silenciar a voz das vítimas.

Uma placa, para registrar o "Teatro do Absurdo" foi colocada no Estádio, depois da redemocratização do país. Ela diz: “O povo sem memória é um povo sem futuro”. (Pesquisa: Nilo Dias)