Boa parte de um vasto material recolhido em muitos anos de pesquisas está disponível nesta página para todos os que se interessam em conhecer o futebol e outros esportes a fundo.

terça-feira, 8 de outubro de 2019

O time dos homens de cor

Que o racismo imperou no futebol brasileiro em seus primeiros tempos é sabido. O que pouca gente sabe é que em São Paulo um clube de futebol foi fundado como uma resposta aos que dificultavam ou restringiam a presença de atletas “pretos” e “mulatos” em suas entidades.

Sua criação também serviu como uma reação à “linha de cor” que imperava dentro e fora dos gramados naqueles tempos. Os grandes times do futebol paulista eram o Club Athlético Paulistano, a Associação Athlética das Palmeiras e o Sport Club Corinthians Paulista, nascido em 1910.

Os dirigentes desses clubes acreditavam que os atletas negros eram inferiores aos brancos na técnica e à ciência do futebol clássico Mesmo quando algum era aceito para jogar, não tinha permissão para participar das suas atividades sociais – como festas e bailes.

A Associação Athletica São Geraldo foi conhecida em seus áureos tempos como o “clube dos homens de cor”. Sua fundação ocorreu no dia 1º de novembro de 1917, por um grupo de desportistas negros: Silvério Pereira, Rufino dos Santos, Felisbino Barbosa, Horácio da Cunha, Benedito Costa e Benedito Prestes.

A finalidade era promover a prática tanto do futebol quanto do atletismo. Suas cores eram o preto e o branco. Ao longo do tempo, seus investimentos maiores foram sempre no futebol. O clube teve sedes na Barra Funda e depois em Perdizes.

Praticar o futebol já naquela época custava caro. Parte do material usado no esporte, tais como bolas, meias, calções, luvas, joelheiras e tornozeleiras era tudo importado.

Não se tem ideia de como o São Geraldo conseguia enfrentar tais despesas. É provável que a sua principal fonte de recursos derivava das mensalidades dos sócios.

Outras prováveis fontes de renda vinham de donativos e da arrecadação das festas e bailes.

Anos mais tarde, Dionísio Barbosa – o fundador e principal dirigente do “Cordão Carnavalesco Camisa Verde”, disse que cedia o salão da agremiação ao São Geraldo, para que este realizasse bailes para arrumar dinheiro, para comprar camisas. E os jogadores do São Geraldo, por sua vez, retribuíam fazendo a proteção dos bailes do “Camisa Verde”.

O clube foi criado pelos “negros da Glette”, um grupo que se encontrava na “Alameda Glette”, próximo à linha férrea. Não tinham habilidades artesanais que os favorecessem profissionalmente, nem dominavam um ofício, por isso trabalhavam como carregadores e ensacadores. Por vezes viviam à margem da ordem social vigente.

Eram respeitados pela sua força física, daí terem recebido a alcunha de “valentes da Barra Funda”. Todavia, as informações fragmentadas disponíveis não permitem tecer detalhes acerca da origem do São Geraldo.

Além do caráter recreativo, o São Geraldo também se inseriu na rede de associativismo negro que, a partir do início do século XX, floresceu em São Paulo. Foram criadas dezenas de associações voltadas para fomentar as atividades recreativas, culturais, políticas e sociais dos autodenominados “homens de cor”.

Eram entidades “dançantes”, “recreativas”, “dramático recreativas”, “dramático recreativa e literária”, “dramático recreativa literária e beneficente”, “beneficente e humanitária, recreativas e esportivas”, ou exclusivamente “esportivas”.

Apesar das diferenças de nomes, essas associações buscavam o desenvolvimento de uma identidade específica, de negros (nós), em oposição aos brancos (eles).

O São Geraldo surgiu na Barra Funda, bairro onde existia um importante segmento da “população de cor”, vinda na maioria de pequenas cidades do interior do Estado. Essa gente vinha à Capital em busca de emprego e melhores condições de vida no pós-abolição.

Era o tempo da fartura do café nas lavouras paulistanas. Na Barra Funda, foram construídos, além da estação ferroviária, grandes armazéns para estocar especialmente o produto.

A mão de obra básica era composta por negros, que realizavam as tarefas mais penosas de carregamento e descarregamento de mercadorias, tanto nesses armazéns, quanto naqueles situados no porto de Santos, para onde eles iam sempre que escasseava o trabalho em São Paulo.

Já as mulheres prestavam serviços como domésticas nas casas das famílias ricas da cidade.

Quando tinham um tempo livre os negros realizavam batuques em torno dos botequins da “Alameda Glette”, rodas de samba, jogos de pernada, umbigada e tiririca (espécie de capoeira) no “Largo da Banana” e comemoravam o Carnaval por meio dos grupos “Barra Funda”, “Campos Elísios” e “Flor da Mocidade”, cordões carnavalescos pioneiros em São Paulo.

A Barra Funda era na verdade um dos maiores “territórios negros” da cidade, nas primeiras décadas do século XX. Na parte alta do bairro, próximo ao Bom Retiro, os terrenos baldios existiam em profusão, sendo usados por essa população, nos primórdios do futebol.

A entidade organizou seus estatutos, registrou em cartório e criou uma estrutura funcional alicerçada em uma Diretoria, associados e atividades. Sua primeira sede foi Rua Barra Funda, mais tarde transferida para a Rua Florêncio de Abreu.

Aos poucos o time de futebol, cujo uniforme tinha as cores preta e branca, foi se estruturando até se filiar à Associação Paulista de Esportes Atléticos (APEA) – encarregada de organizar o futebol no Estado – e disputar o campeonato da chamada “Divisão Municipal”, que reunia uma série de clubes de várzea.

Não demorou para o clube ganhar destaque em meio aos negros. Tinha no time bons jogadores, como Zelão, Tita, Africano, Filipão, Olavo, Caçaróla, Pé, Buiú, Alfredo, Goiabada, Bizerrão, Caetano, Vaca Braba, Bode e Hilário, que protagonizaram, na “zona Pacaembu, jogos de escol”.

Também merecem ser lembrados Carlos Campos, o “famoso beque” Sarará, o atacante Ditinho – considerado um dos craques do time – e o “meia esquerda” Paulo, que foi uma figura brilhante.

Ao longo de sua trajetória, o “alvinegro” da Barra Funda colecionou resultados positivos dentro dos gramados, sendo o principal deles a conquista da “Copa do Centenário da Independência do Brasil” – nome dado ao campeonato paulista de 1922 –, evento que fez parte das comemorações alusivas aos 100 anos da emancipação política do Brasil.

Tratou-se de uma competição bastante disputada. O São Geraldo, clube constituído “somente de elementos de cor”, enfrentou na final o Flor do Belém, time “formado por brancos” e considerado favorito ao ambicionado título.

A decisão do “Campeonato do Centenário” se deu no “Estádio da Floresta”, num domingo de Páscoa.

Com a conquista do título, o “alvinegro” da Barra Funda tornou-se mais conhecido em São Paulo, especialmente no meio negro, legitimando-se como o principal time de futebol do gênero.

Além de disputar o campeonato da APEA, o São Geraldo costumava jogar contra outros clubes de negros. Um dos grandes rivais do São Geraldo localizava-se justamente no mesmo bairro. Era o time de futebol do Grêmio Barra Funda, com o qual disputou partidas memoráveis.

Em abril de 1926, o “Grêmio Recreativo Nem que Chova” abriu as inscrições de um “festival esportivo”, planejando reunir 10 times de futebol do meio negro no campo do “Paulista de Aniagens”, situado na Rua Glicério. Como premiação, previa-se distribuir “duas ricas taças”.

O “festival” ocorreu no dia 9 de maio daquele ano e, ao que parece, contou com a participação do São Geraldo. Já no ano de 1932, o time ganhou a “Taça Clarim d’Alvorada”, troféu de campeão entre as agremiações esportivas negras, que existiam na capital.

Também os intercâmbios do “alvinegro” da Barra Funda ocorreram com os clubes do interior paulista. Em agosto de 1929, a equipe viajou até a cidade de Campinas, para enfrentar a Ponte Preta, que venceu por 4 X 2.

Em algumas vezes o São Geraldo jogou torneios e partidas amistosas  contra adversários de outros Estados, em especial do Rio de Janeiro.

Em 1925, ocorreu uma crise na organização do futebol paulista, o que levou o Clube Atlético Paulistano a abandonar a APEA e decidir criar a Liga de Amadores de Futebol (LAF).

Seu gesto foi acompanhado imediatamente pela Associação Atlética das Palmeiras e pelo Sport Club Germânia. A nova associação nasceu com o propósito de “depurar” o futebol e incrementar a prática do esporte sobre as bases do “mais restrito amadorismo”.

Tanto a APEA quanto a LAF reivindicavam para si o direito de representar oficialmente o futebol do Estado de São Paulo. Neste cenário, o São Geraldo aderiu à nova associação, disputando o campeonato da divisão “intermediária”.

Convém lembrar que, nessa época, não havia lei de acesso. Os nove times considerados grandes: Club Atlético Paulistano, Sport Club Germânia, Sport Club Corinthians, Associação Atlética das Palmeiras, Britânia Atlético Clube, Clube Atlético Santista, Antártica Futebol Clube, Clube Atlético Independência e Paulista Futebol Clube, que compunham a divisão mais importante da LAF, jogavam entre si e não corriam o risco de rebaixamento.

Já o São Geraldo jogava contra os clubes menores, muitos dos quais egressos do futebol de várzea. E mesmo que aí se destacasse, não havia a perspectiva de ascender à divisão principal.

A imprensa negra costumava acompanhar o desempenho do São Geraldo: “A Associação Atlética São Geraldo é uma das agremiações de homens pretos que, no esporte, tem sabido honrar sobremaneira o nome do negro brasileiro”.

Segundo jornal “O Clarim d’Alvorada”, o São Geraldo fechou a competição de 1929 de “um modo brilhante e digno de todos os encômios”. Basta dizer que, no decorrer do ano, seu “quadro” não sentiu o gosto da derrota. Os “jogadores não sofreram a menor pena ou censura, em se tratando de disciplina”.

Aquele foi o último campeonato que o São Geraldo disputou na LAF.
Lentamente, os times foram regressando à APEA. Foi o caso do Sport Club Corinthians, que ajudou a erguê-la em 1925, e retornou à APEA em 1927, tendo nela participado de apenas um campeonato. Ao todo, a LAF organizou três campeonatos paulistas, extinguindo-se em 1929.

O insucesso da entidade deveu-se basicamente à sua insistência em manter o futebol amador. Enquanto isso, a APEA, que na teoria preconizava o amadorismo, na prática deixava que clubes e jogadores experimentassem o profissionalismo.

Não tardou para que os melhores jogadores da entidade dissidente começassem a se transferir para as equipes da APEA. Os que lá permaneceram, com raras exceções, não desejavam mesmo se profissionalizar como futebolistas.

Foi neste contexto que o São Geraldo elegeu uma nova diretoria e voltou a se afiliar à APEA, participando de suas competições. Mas, naquela altura, o clube da Barra Funda já não era o mesmo.

Pouco a pouco entrou em crise, enfrentou tensões internas e se desarticulou coletivamente. Sem resultados expressivos dentro de campo, restava viver de um discurso saudosista. Não é possível assegurar, quando o time encerrou as suas atividades, mas parece que foi na primeira metade da década de 1940.

O insucesso do São Geraldo deveu-se basicamente à sua insistência em manter o futebol amador – condição na qual os jogadores ficavam desprovidos de salário, vínculo formal e não conseguiam viver exclusivamente do futebol.

Conforme revelou “A Voz da Raça” em julho de 1933, “os principais clubes de futebol aos poucos iam reformando seus estatutos e entre cláusulas abolidas figurava sempre a que proibia a entrada de homens de cor”.

Para o veículo de comunicação “oficial da Frente Negra Brasileira”, o jogador símbolo do “ingresso do negro nos altos cenários” do futebol foi Mateus Marcondes.

O “másculo” atleta do Clube Espéria teria sido a última “figura a aparecer vitoriosamente em nossos esportes, vencendo e convencendo aos paredros do futebol bandeirante”.

Muitos clubes da primeira divisão do futebol paulista passaram a “recrutar” jogadores negros na década de 1930. Isto não significa que tenham cessado as denúncias de que tais jogadores, embora elevassem o nome das agremiações desportivas, eram aceitos apenas como atletas e não como sócios.

Seja como for, emergiu um fenômeno novo: alguns dos melhores jogadores negros migraram para os grandes clubes. Bianco, o famoso “gorrinho encarnado” do Sul-América, transferiu-se para a Associação Atlética das Palmeiras.

Talvez o caso mais emblemático tenha sido Petronilho de Brito, um típico jogador da várzea paulistana que, na concepção de Thomaz Mazzoni, trouxe pioneiramente para o “futebol dos grandes clubes o verdadeiro futebol da raça negra”.

Quem um dia descobriu o São Geraldo foi o Corínthians. Começou a passar a mão nos negros devagarinho, tirou um, tirou outro e destruiu o São Geraldo.

O São Geraldo, continuou a ser evocado no meio negro como o “Campeão do Centenário”. Dada a importância do acontecimento, devia ser celebrado, rememorado e transmitido de geração para geração, para não cair no esquecimento.

Em 1948, ao recordar os “maiores feitos do futebol brasileiro”, a folha “Mundo Esportivo” mencionou o título do São Geraldo de campeão do Centenário da “Divisão Municipal”.

A esse respeito, o “Clarim d’Alvorada” já tinha sido bem incisivo em sua edição de 26 de julho de 1931: “o São Geraldo é um clube que honra a coletividade negra no futebol paulista”.

Para muitas “pessoas de cor”, o São Geraldo era uma fonte de orgulho racial. Na prática desportiva, constituía uma espécie de sismógrafo do quanto o negro era perseverante, dotado de disciplina e qualidades físicas, aliadas à inteligência e competência para alcançar os pináculos da vitória e se impor perante os desafios da vida (e da nação), colocando em xeque a ideologia de sua inferioridade racial. (Pesquisa: Nilo Dias – Fonte maior: “Verminosos por Futebol)

O São Geraldo sagrou-se campeão municipal do centenário, em 1922 (Foto: Cacellain)

Nenhum comentário: